Diário de um cão – O começo

Olá, meu nome é Faísca e tenho quase dois anos. Vi que está na moda cachorros escreverem sobre suas histórias e como não quero ficar para trás, resolvi contar a minha também. Cheguei ao mundo no dia 25 de Janeiro de 2020. Na verdade, só estou citando isso porque a mamãe gosta de dizer que tenho um aniversário, mas o fato é que o meu nascimento é um mistério e ninguém sabe ao certo quando isso aconteceu. Da minha ninhada, somente eu, uma irmã idêntica a mim e um irmão malhadinho muito fraco, sobramos. O magricela, eu até entendo não ter sido adotado, a falta de leite fez com que ele ficasse cabeçudo e parecia um tanto lesado. E os humanos são muito exigentes na hora de escolher um animal. Mas, e eu? Sempre fui esperto, o primeiro a chegar para mamar, era fortinho e inteligente. Mesmo assim, vi meus irmãos indo embora, um por um, e eu ficando. Mamãe disse uma vez que era por causa da minha cor, mas quem é que não ia achar bonito pelos pretos e reluzentes como os meus? Da minha parte, gosto de pensar que foi o destino. Eu nasci para ela e ela para mim e era assim que devia que ser.

Como sobramos, e os primeiros humanos que conheci não nos queriam, fomos jogados nos quintais de outras casas. O engraçado foi que eles nem perguntaram se os outros humanos, donos daqueles lugares, estavam dispostos a ficar com a gente. Acabou que eles também não nos quiseram, ao ponto de uma das mulheres gritar que ia jogar meu irmão no lixo. Aquilo me deixou um pouco confuso. Tudo bem que ele era meio lerdo e tinha aquela aparência de doente, mas não era nada que não pudesse ser resolvido com uma boa comida… será que só isso seria motivo para jogar alguém fora? Naquele momento, notei um padrão: os primeiros não nos quiseram e nos descartaram, os segundos queriam fazer a mesma coisa. Concluí então que aquele comportamento devia ser um hábito comum entre os humanos, se não gostavam de alguma coisa, descartavam. Só não tinha entendido direito ainda, o critério para não gostar. Até que uma mulher que passava pela rua, escutou a comoção e se aproximou. Ela brigou por nós, nos levou para casa, nos deu comida, carinho e uma cama quentinha. Foi quando percebi que ainda não entendia os humanos tão bem quanto eu pensava. Depois disso, não demorei muito para chegar ao lugar que chamaria de lar. Minha mãe me viu numa tal de internet e quis me adotar. Assim como as últimas duas moças que conheci, ela também me deu uma caminha, comida e carinho. Notei outro padrão. E com ele percebi que os humanos se dividem em dois grupos: os que jogam tudo no lixo e os que dão caminha, comida e carinho.

No começo, a convivência com a minha nova família não foi tão fácil. Eu não entendia a minha mamãe e ela tampouco a mim. Em nossa primeira noite juntos, ela me colocou para dormir ao seu lado, dentro de uma caixa com um travesseiro, um cobertor e um potinho de água. Estava confortável, mas a noite é muito apavorante para um filhotinho e eu me senti sozinho. Eu ainda não era o jovem cachorro maduro que sou hoje, então chorei a noite toda. Mamãe acabou me colocando para dormir na cama junto com ela. Fiquei tão feliz que não me controlei e um jato de líquido quente saiu de mim e foi parar no travesseiro dela. Não tinha planejado, mas haveria presente melhor para lhe dar? Aquilo nos manteria ainda mais aquecido durante a noite. Com este episódio, descobri que os humanos são mais difíceis de agradar do que eu imaginava. Por um algum motivo inexplicável, eles não gostam tanto de xixi quanto nós cachorros. Mas minha mãe nem sempre odiou minhas necessidades. Na verdade, quando eu era pequeno, ela tinha verdadeira obsessão por elas. Tanto ela quanto a moça de jaleco branco eram apaixonadas pelo meu número dois. Viviam tirando fotos das minhas obras e as coletavam para guardar dentro de um potinho. Vai entender o que se passa na cabeça dos humanos! Quanto ao líquido quente, ela não gostava dele na cama, mas pulava que nem uma louca pela sala obrigando meus avós a fazerem o mesmo, toda vez que eu o fazia em um daqueles tapetes brancos que ela espalhava pelo corredor. Era a coisa mais estranha do mundo! Porém, eu me animava e acabava pulando junto com eles sem nem saber o porquê daquilo. E depois de toda a festa, eu ainda ganhava um petisco.

Com o tempo, fui aprendendo a conviver com a minha família. Apesar de sempre parecer que comia coisas gostosas, mamãe me dava um negócio duro e sem graça para comer. Não me parecia justo. Por isso, logo comecei a reivindicar minha parte do quinhão. E, modéstia a parte, até hoje eu sou ótimo nisso! É só fazer uma cara de coitado que todo mundo dá risada e me dá um pedaço de qualquer coisa que tiver comendo. Humanos são tão bobos! Certa vez, minha humana me deu um tal de frango teriaki. Aquilo era uma delícia! Mas acho que só cachorros orientais que podem comer tal quitute, porque, depois de um tempo, o meu barrigão ficou doendo. Fiz um estrago pela casa, saiam coisas de mim que eu nem sabia que existiam. Achei que levaria bronca, mas não, na verdade, mamãe parecia bem preocupada. Ela me levou para outro moço de jaleco branco que eu ainda não conhecia. Ele furou a minha patinha e isso fez com que eu me sentisse melhor. Quem acabou levando bronca foi a minha mãe, da moça de jaleco branco de sempre. Por mais que eu tivesse passado mal, aquilo não me inibiu de querer continuar a comer tudo o que eu via pela frente. Eu não tinha culpa, estava em fase de crescimento. Eu corria pela casa com o que pegava entre os dentes e com a minha humana em meu encalço. Passávamos o dia inteiro nesse pega-pega (confesso que até hoje faço isso porque é muito engraçado vê-la que nem tonta atrás de mim). Comi meus brinquedos, camas, e roupinhas. Também comi as roupas, meias, calcinhas e chinelos dela. Roí pé de mesas, cadeiras, camas. As almofadas explodiam, do nada! Assim como os tapetinhos de xixi. Eu achava os braços e pernas da minha mãe especialmente saborosos e divertidos, apesar de ela não concordar comigo. No mais, eu até que era tranquilo durante o dia, mas tinha uma hora, logo depois da janta, que esse impulso era praticamente incontrolável, era como se quem estivesse explodindo fosse eu. A mamãe chamava esse momento de hora do pesadelo. Ela dizia que eu virava o demônio da Tasmânia para, do nada, cair e dormir como se um furacão não tivesse passado pela casa. Pior que era bem isso que acontecia!

Mas não pensem que a minha vida era só receber e receber, sem dar nada em troca. Os humanos tem um defeito genético que faz com que eles não entendam algumas coisas óbvias. Por isso, tomei como meu dever protegê-los daquilo que é potencialmente perigoso a eles, só que não percebem. Eu vou dar um exemplo e depois vocês não me dizem se eu não tenho razão. Na mesma época que vim para a minha família, chegou ao país um bicho chamado pandemia. O negócio é invisível, só que eles têm tanta raiva dessa coisa que precisam usar focinheiras toda vez que vão sair de casa para não morder alguém. Além disso, o medo deles é tão grande que algumas pessoas procuraram moças de jaleco branco, como a minha, para tomar nossa vacina de cachorro, outros se entupiram do mesmo remédio que eu tomei para curar a minha sarna achando que isso faria com que o bicho invisível não os pegasse. Até eu sei que humano é humano, cachorro é cachorro, bicho invisível é bicho invisível e sarna é sarna. A gente existe no mesmo planeta e depende uns dos outros, mas isso não quer dizer que somos a mesma coisa e o que serve para um servirá para o outro. A loucura é tanta com algo que ninguém consegue ver, mas, as vassouras, rodos, baldes… aquela fumaça de churrasqueira, o que é aquilo, Pai dos cachorros? Estão ali, entre nós, todos os dias, e ninguém sai de focinheira por causa deles, mesmo sendo extremamente perigosos e estando só a espreita para nos atacar. Sorte dos meus humanos que eu sempre vigio estas coisas e as coloco em seus devidos lugares. Sem mim, eles estariam perdidos por aí perseguindo coisas que não dá para ver. Contudo, desafio maior do que a falta de raciocínio lógico dos humanos, foi ensinar o tio Marley a ser cachorro. Ele, com certeza, seria um dos jogados no lixo se topasse com o outro grupo de humanos em sua vida. No fundo, eu não entendia qual era o problema dele. Não lhe faltou leite, pois era gordo e grande. Mas, mesmo assim, ele não conseguia fazer nada sozinho. Não comia, andava ou latia. Nem mesmo as necessidades sabia fazer. Vivia deitado, reclamando de dor e com a língua jogada para fora. Concluí que ele era um filhote ainda mais novo do que eu, mesmo sendo grande. Então eu, como veterano, tinha a obrigação de lhe ensinar as coisas básicas da vida. E eu tentei, juro que tentei! Desenvolvi um mecanismo: para brincar, eu puxava o seu rabo e para ensiná-lo a andar, puxava sua língua. Tentei ensiná-lo o truque do tapete e levava coisas até sua boca para fazê-lo mastigar. Mas tudo foi em vão. Coitado! No fundo, eu tinha dó dele. Algumas vezes ele parecia tão cansado que eu sentia que ele só precisava de um aconchego, então eu somente deitava ao seu lado. Um dia, meus avós e mamãe saíram levando o tio Marley com eles. Depois do trabalho que tive tentando ensinar alguma coisa para o cachorro que não sabia fazer nada, quem ganhava o passeio era ele e eu ficava sozinho em casa? Aquilo me deixou com raiva, então chorei e uivei tanto que a vizinha ligou para a mamãe perguntando se o tio Marley não estava passando mal. Humanos não entendem nada mesmo. Ele nem sabia uivar! Naquela noite, meus avós e minha mãe voltaram, mas o tio Marley, não. Nunca mais o vi, talvez esteja em uma escola para aprender a ser cachorro. Quem sabe um dia ele volta? Depois de sua partida, por um bom tempo, eu fui o único cachorro da casa e aquilo me agradava. Até que, para a minha surpresa, minha irmã gêmea, Lilica, resolveu aparecer do nada. Mas a história dela é coisa para outro dia…

6 comentários em “Diário de um cão – O começo”

  1. Sensacional. Sou apaixonada pelo meu Marley e estou com os olhos cheios de lágrimas pelo tio Marley e muito apaixonada pelo Faísca!

    Parabéns pela narrativa!

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