E se ele falasse?

Alice estava incomodada, aquele não havia sido um dia fácil no trabalho, só queria ir para casa e tomar um longo banho, mas o ônibus demorava a chegar. Não havia cobertura onde esperava e as nuvens negras sobre sua cabeça anunciavam a tempestade que chegaria a qualquer momento. Estava sem guarda-chuva, que ótimo! Ela se sentou no banco do ponto e puxou o ar que entrou abafado por entre o tecido de sua máscara. No mesmo momento, um senhor que passava por ela soltou um espirro. Ele tentou abafá-lo com a mão, já que estava sem sua proteção, mas sem sucesso e um pouco constrangido, olhou para os lados e pediu desculpas. “De que adianta se desculpar agora, meu amigo? Seria mais educado de sua parte se estivesse usando a sua máscara.”, ela pensou, mas não disse nada, queria evitar confusão. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair e Alice levantou instintivamente sua cabeça para observá-los. Percebeu pequeníssimos pontos verdes, milhares deles, vagando pelo ar entre as gotas. Alguns juntavam-se a elas e alcançavam o chão mais rápido, outros permaneciam flutuando. Ela tentou aproximar-se de um dos pontos para observá-lo melhor. Parecia um bicho, talvez um inseto? Não, era algo diferente. Algo o qual ela nunca havia visto antes. O que era aquilo? Havia coroa em suas pontas?

               – Mas que merda é essa? – Não conseguiu se conter, soltando em voz alta.

               – Somos corona, somos corona – Os pontos anunciaram em uníssono, em uma sinfonia sincronizada.

               Alice olhou para os lados, queria saber quem estava falando com ela, mas todos naquele ponto estavam concentrados em seus celulares, aparentemente a ignorando com louvor.

               – Somos corona, somos corona. – Escutou novamente.

               Seus olhos arregalaram-se ao perceber que a resposta vinha daqueles pequenos pontos flutuando no ar a sua frente. A surpresa logo passou a desespero quando se deu conta do que aquilo significava. Abriu sua bolsa, pegou um borrifador que carregava dentro dela e começou a espirrar álcool para todos os lados. Vários dos pontos sumiram instantaneamente, mas muitos outros ainda estavam ali. As pessoas a sua volta estranharam o seu comportamento e afastaram-se discretamente, balançando as cabeças em reprovação.

               – Que foi? Não estão vendo? Estão em todos os lugares! – ela gritou.

               – Não adianta, só você pode nos ver ou ouvir. Se continuar a agir assim só pensarão que é louca – um dos pontos comentou, aproximando-se da menina. Ela soltou um grito abafado de pavor e borrifou o álcool diretamente nele, mas nada aconteceu, ele continuou ali.

               – Que maluca! – um garoto ao seu lado com fones no ouvido, comentou.

               – Eu não lhe disse?! – o vírus falou com um certo “sarcasmo”.

               – Ele está certo! Eu realmente endoidei. Meu Deus, sou maluca e vou ficar doente! Eu vou morrer! – disse em desespero, sentando-se novamente.

               – Ah, para de drama! Não vou te infectar, não enquanto você mantiver seus “poderes”, pelo menos.

               – Poderes? Isso está mais para uma maldição. Quem é que ia querer falar com algo como você? Aliás, o que são vocês? Você é mesmo ele?

               – Conheço muita gente que morreria para falar conosco: médicos, cientistas, e a lista continua… Você deve estar em negação, eu entendo. É muito para processar! Todos reagem de maneira similar. Mas se nesta altura do campeonato ainda não sabe o que sou, só posso concluir que estava vivendo em uma caverna. Sim, somos o coronavírus, aquele que causa a Covid-19. Nossa colônia recém saiu daquele senhor ali. – Ele foi para frente como se apontasse para o homem que acabara de espirrar. – Estou aliviado de ter saído, estava muito apertado ali. Não sei como ele ainda está de pé, há muitos de nós naquele organismo.

               – Isso não é real, isso não é real, isso não é real… – Alice recitava para si mesma em um frenesi.

               – Se você quer perder seu tempo negando o que está acontecendo, fique à vontade. Só lhe aviso que esta é uma oferta com prazo de validade, logo não poderá mais nos ver ou ouvir, então, se eu fosse você, aproveitaria a oportunidade.

               Alice saiu do transe com o que ele falou. Por mais louco que aquilo parecesse, e com certeza era, ele tinha razão. Estávamos em uma guerra há quase um ano contra aquele pequeno ser, haveria melhor oportunidade para desvendar finalmente seus mistérios?

               – Por quê? – foi o que conseguiu dizer.

               – Por que o quê? Por que o céu é azul? Por que as jacas, mesmo sendo enormes e pontudas, crescem no alto e não rasteiras como as melancias? Você tem que ser mais específica.

               – Por que estão aqui? Por que vocês começaram a existir? O que fizemos de errado para que vocês aparecessem?

               – Não somos novos, talvez sejamos mais velhos do que vocês. Quem sabe?! Vocês modificam, todos os dias, o planeta em que vivem. Desmatam, colocam fogo, estinguem espécies, poluem, acham que tudo que está na natureza, animal, mineral ou vegetal, está lá somente para seu bel-prazer. Pensou que esse modo de vida não traria consequências? O que fizeram de errado? Você me pergunta. Acho mais fácil enumerar o que estão fazendo de certo. Por que estamos aqui? Vou lhe responder com uma pergunta: o que faria se te expulsassem de onde mora?

               – Teria que encontrar outro lugar.

               – Exatamente.

               Alice calou-se por um instante, processando o que acabara de ouvir.

               – Mas o que vocês pretendem nos atacando? Querem acabar com a humanidade? Vocês mataram mais de um milhão e meio de pessoas no mundo todo.

               – Nem que tivéssemos planejado isso, não nos daríamos ao trabalho, pois do jeito que as coisas vão indo, vocês mesmos terão sucesso nessa empreitada. Veja bem, há um grande risco também para a minha espécie quando habitamos um humano, afinal vocês têm alguns meios eficazes de nos combater. Seria uma batalha sem propósito! Não que alguma tenha algum sentindo, mas guerra é coisa de humanos, não temos interesse nisso. Sempre coexistimos muito bem com outros animais, sem lhes causar danos, mas como cada corpo reage a nós, isso está fora do nosso controle. O que posso dizer é que não fomos feitos para habitar o seu organismo, nem é o que mais gostamos, mas não tivemos escolha, nos obrigaram a migrar e as consequências disso não podem recair sobre nossas coroas.

               A lógica fez com que Alice se sentisse contrariada. Como podia uma coisa insignificante daquelas dizer que a culpa era dos humanos?

               – Não acredito que não queiram acabar conosco.

               – E se não for a gente que queira? A Terra é um ser vivo e, assim como o seu organismo reage a nossa presença tentando nos combater como ameaças, ela pode estar fazendo a mesma coisa. Além do mais, vocês não se orgulham em dizer que são os únicos seres racionais por aqui? Isso, em parte, é verdade.

O garoto que estava ao lado de Alice elevou a mão que apoiava no banco para cumprimentar o amigo que acabara de chegar ao ponto.

– Cara, ainda aqui? – o recém chegado perguntou.

– Os ônibus estão demorando, acho que é por causa da chuva.

Alice notou que as mãos dos dois meninos estavam cheias de pontos verdes e se exaltou quando o novato as levou instintivamente aos olhos para coçá-los, forçando vários dos pontos a entrarem em suas mucosas oculares.

– Não! Não faça isso! – gritou exasperada.

Os dois olharam surpresos para ela e o garoto que já esperava há algum tempo no ponto puxou o outro de lado.

– Não liga para essa dai não, ela é maluca! Não faz muito tempo, estava jogando álcool em todo mundo aqui. – O outro deu risada. Os dois viraram a cara para Alice, ignorando-a e continuaram a conversar.

– Bem, as vezes eu tenho minhas dúvidas sobre vocês serem seres pensantes – comentou o vírus depois da cena que Alice, horrorizada, acabara de presenciar – Mas sobre nós, estão certos, não temos o poder de planejar, só existimos.

– Certo… – Alice comentou balançando a cabeça, tentando não pensar no menino que acabara de ser infectado pelo outro. – Temos muitos remédios que funcionam contra vocês, como a Cloroquina e a Ivermectina – completou, não prestando muita atenção ao que dizia.

O vírus se remexeu no ar, exaltado. Alice poderia jurar que se ele pudesse gargalhar o estaria fazendo naquele exato momento.

– Você acabou de me deixar em uma crise existencial. Eu tinha certeza de ser um vírus, mas agora já não sei mais. Será que sou um protozoário? Um verme? Um inseto? Ou um ácaro?

Novamente Alice notou ironia na frase do vírus. Seria possível que aquele ser pudesse ser sarcástico? Bem, o possível era algo relativo naquele momento, afinal ela estava falando com ele, não estava?

– Mas o tempo de vocês aqui está contado! – respondeu irritada. – Estamos desenvolvendo várias vacinas.  

               – Ah, essas sim são eficazes. São como bombas, dificilmente irão nos erradicar, mas causam um estrago enorme! – O vírus parecia desanimado. – Mas temos um ponto ao nosso favor neste aspecto: vocês não acreditam muito nelas, assim como não acreditam na gente, não é mesmo?

               Alice bufou. Ele estava certo novamente, pois nos últimos anos havia uma crença crescente de que vacinas eram feitas para manipular os homens e não para prevenir doenças.

               – Seu tempo está acabando, tem mais alguma coisa que queira saber?

               – Não estou conseguindo pensar em nada agora. – Ela parou um segundo e depois se voltou para o pequeno ser: – Algum conselho que possa me dar?

               – Por que eu lhe daria algum conselho? Para mim e para os meus está ótimo assim! Continuem ignorando nossa existência, encontrando pessoas, fazendo festas. Quem é que não gosta de uma boa festa? Comemorem bastante! Haja como se não houvesse amanhã, quem sabe um dia vocês não acertam?

                 E lá estava a ironia novamente, Alice estava começando a se acostumar com isso.

               – Nosso tempo acabou. Você não vai lembrar de mim ou da nossa conversa. Acredite, será melhor assim! Já tentamos fazer de outra maneira, mas não deu muito certo, a grande maioria das pessoas que lembraram acabaram inventando teorias absurdas sobre nós e de nada adiantou a experiência. Com sorte o seu subconsciente irá gravar algumas informações úteis para você e é assim que deve ser.               

Alice piscou e quando abriu os olhos novamente não havia nada além das gotas de chuva. Não sabia ao certo porque procurava alguma coisa no ar, mas não conseguia afastar a estranha sensação de que algo estava lá. Surpreendeu-se com o borrifador em suas mãos, não lembrava de tê-lo pegado. Ah, finalmente o ônibus dela estava chegando. Fez sinal e esperou pacientemente na fila para embarcar no veículo. Olhou para os dois adolescentes que conversavam no ponto de ônibus e, por algum motivo, sentiu uma urgência extrema de passar álcool gel nas mãos.