Diário de um Cão – Faísca e o Natal

Querido diário, você já ouviu falar de um tal de Natal? Não? Então eu vou te contar que coisa é essa e minha relação de amor e ódio com a data.

Tudo começa com uma árvore. Mas não é uma árvore comum, dessas que eu faço xixi na rua, essa é de plástico. Humanos são tão estranhos! Eles cortam as árvores de verdade que são boas para fazer xixi, tem um monte de passarinhos para latir, dão sombra, deixam cair frutas para comer, entre outras coisas, enquanto montam e cuidam de uma de plástico dentro de suas casas. Vai entender o que se passa na cabeça deles! A parte boa é que eles penduram um monte de bolinhas e bonequinhos coloridos nelas. No meu primeiro Natal, eu fiquei super empolgado com a montagem da árvore de mentira, porque eu imaginei que a única finalidade para aquilo era brincarmos da coisa mais divertida do mundo: o pega e corre atrás. Então, não tive dúvidas, eu pegava as bolinhas e a mamãe corria atrás de mim querendo elas de volta. A tradição do pega e corre continua, fielmente, até hoje.
Outra coisa que a vovó faz nessa época é colocar, em cima da mesa do telefone na sala, um monte de bonequinhos em volta de um boneco menor. Ela chama aquilo de presépio. Eu não entendo direito o que é isso, mas teve uma vez que eu resolvi pegar o tal do boneco menor que fica no meio. Dessa vez, a brincadeira do pega e corre teve proporções estratosféricas, porque a casa inteira quis participar e ainda gritava: pega o Faísca porque ele pegou Jesus. Foi muito divertido!
Porém, a parte mais gostosa do Natal é que a família inteira se reúne em uma noite e tem um monte de comida. É alucinante! Eu não sei se recebo as pessoas com lambidas em suas caras, se eu faço xixi pela casa inteira de tão animado ou se eu roubo comida. Então eu decido fazer de tudo um pouco, afinal, a vida é uma só e não temos tempo a perder. Mas, por mais que eu apronte, eu nunca vou superar o saudoso tio Marley. Dizem que em um dos natais, ele ficou cansado das visitas e começou a latir para que elas fossem embora porque ele queria dormir. Sensacional! O tio Marley não sabia ser cachorro, mas sabia expulsar como ninguém as pessoas quando queria.
Mas nem tudo são petiscos de banana nessa data, caro diário. Porque, a meia-noite, alguns humanos soltam aquelas bombas no céu que eles chamam de fogos. Para mim aquilo deveria chamar Deus me livre é o apocalipse, terceira guerra mundial, bomba atômica, vamos todos morrer, salve-se quem puder! Eles estouram essa coisa medonha durante toda a noite e, às vezes, até nos dias seguintes e eu fico com muito medo, procurando lugar para me esconder. Dizem que é um tal de papai Noel que vem nesse horário. Se ele precisa fazer esse barulho todo para chegar, era melhor ter ficado no polo norte mesmo. Eu não sei onde isso fica, mas espero que seja bem longe de mim! Depois de tanto tremer, eu estava com tanta raiva desse tal de Noel barulhento que eu não queria ver ele nem pintado de osso! Porém, a mamãe me deu um brinquedo super legal e disse que foi ele quem trouxe. Eu nunca vou admitir para ninguém, mas isso fez eu ter um pouco de simpatia pelo velho.
Bom, acho que resumi bem o que é o Natal. Só faltou dizer algo que todo mundo diz: Feliz Natal para todos!

Meu presente de Natal desse ano.

Diário de um Cão – Chegada da Irmã Gêmea

Querido diário (sempre quis dizer isso!), estou de volta para continuar os relatos da minha vida de cão. Onde é que eu tinha parado mesmo? Ah, sim, com a chegada da minha irmã gêmea: Lilica. Esse foi o nome que a minha família deu para ela, pois, antes de viver conosco ela era chamada por outra coisa. Eu não sei bem o que significa Liminar e nem entendo direito os critérios que os humanos usam para nos batizar, mas tenho quase certeza de que isso é um palavrão porque vovó e mamãe falaram que era um absurdo chamá-la por esse nome e trataram logo de trocar. Em minha opinião, Lilica ficou melhor mesmo para ela. Enfim, como ia dizendo, estávamos em uma bela tarde de sábado, pelo menos era bela até a moça anterior a minha família, que faz parte do grupo que dá caminha, comida e carinho, vir nos visitar e trazer com ela, acreditem se quiser, a minha irmã gêmea e o meu irmão cabeçudo. O fato é que achei que nunca mais os veria e eles mudaram tanto que eu quase não os reconheci. Ela, só pele e osso e ainda cheia da nossa sarna hereditária e ele… como pôde aquele magricela ter ficado maior do que eu? Pareciam até outros cachorros, mas o cheiro era inconfundível, definitivamente eram eles. Aquilo tudo era uma afronta! Vir visitar sem avisar, trazer aquela coitada caindo aos pedaços e o outro… ainda não me conformo que ele está maior do que eu! Tive que expressar minha indignação, então lati a visita toda, sem parar.


A moça boazinha foi embora e levou com ela meu irmão, mas esqueceu da Lilica. Por mais magrela que ela estivesse, foi muita falta de atenção da parte dela não ter visto que deixou a minha irmã para trás. O pior foi que Lilica nem se importou com o esquecimento, achou-se dona da casa. Pegou meus brinquedos sem permissão, tomou do meu pote de água, comeu toda a minha comida (e parecia uma louca fazendo isso!), roubou a minha caminha e ainda brigou comigo quando eu quis retomar o meu lugar de direito. Naquela época, eu dormia de conchinha com o meu vovô em sua cama e em sua primeira noite conosco, minha irmã resolveu roubar o meu lugar no meio dos meus avós. Eu fiquei inconformado! Então, novamente, tive que expressar minhas emoções e lati a noite inteira só para passar um recado: se eu não durmo, ninguém dorme!
Os dias foram passando e nada da moça, que agora eu já não sabia se era tão legal assim, lembrar-se de pegar minha irmã de volta. Coitada! Talvez eu não devesse culpá-la tanto pela minha infelicidade, pois, provavelmente, ela sofria de algum problema de memória. Eu finalmente tive esperanças de que tudo voltaria ao normal quando a vovó e a mamãe saíram com a minha irmã sem mim, afinal, aquilo significava que ela não mais voltaria, não é mesmo? Não foi assim com o tio Marley? Mas Lilica não só voltou como estava toda estranha. Tinha uma roupa e um cheiro engraçado e só queria saber de dormir. Meus humanos realmente estavam testando a minha paciência, então, pela terceira vez em menos de uma semana, eu lati. E, desta vez, para me fazer escutar, ladrei meu manifesto por dois dias consecutivos, sem parar. Não adiantou nada! E ela continuou lá. Uns quinze dias depois desse episódio, foi a minha vez de sair com a mamãe e a vovó sem ela. Eu finalmente ia descobrir que lugar era esse que os cachorros iam sem mim, que uns voltavam e outros não. Qual foi a minha decepção quando descobri que o lugar mágico que eu imaginava era somente o consultório da moça de jaleco branco? Elas me colocaram deitado na maca fria e a moça me picou, logo em seguida comecei a ficar sonolento. Antes de me entregar por completo ao sono, vi que mamãe saiu da sala e eu fiquei com medo. Será que desta vez era eu que não iria mais voltar? Mas não, quando acordei mamãe estava lá me esperando. Eu estava muito tonto e com uma dorzinha chata nas partes de baixo, parecia que haviam me tirado alguma coisa… Percebi que estava acontecendo comigo o mesmo que fizeram com a Lilica dias antes e meu barrigão se encheu de remorso. Se ela estava tão ruim quanto eu estava naquele momento, foi uma injustiça de minha parte eu ter latido tanto no ouvido dela. Sorte minha que ela não é rancorosa e não retribuiu minha atitude com a mesma moeda.


No final das contas, Lilica veio para ficar. Com o tempo eu me acostumei com a sua presença e entendi que ela não era uma cachorra má, só um pouco sem noção. Ela não sabia comer, mamãe teve até que comprar um prato engraçado para ela, cheio de coisas no meio que dificultavam pegar a comida, só para ver se ela comia mais devagar. Funcionou. Apesar de eu achar que o problema real dela era o medo de passar fome. Assim que ela soube que sempre se alimentaria, não ficou mais desesperada com isso. Que tonta! Como se fosse possível mamãe não nos dar o que comer. Ela também era muito estabanada. Não tinha noção de espaço, corria e pulava de qualquer jeito e em qualquer lugar, sempre acabava batendo em alguma coisa ou alguém. Para falar a verdade, eu não deveria contar isso como se estivesse no passado, porque até hoje ela é assim! Mamãe sempre diz que o treinamento militar que ela teve com a outra família não adiantou de nada, só fez com que ela adquirisse traumas. Minha humana pode ter razão quanto a isso, porque minha irmã é sim, um tanto quanto medrosa. Apesar da minha resistência, no final foi bom a moça ter esquecido ela com a minha família. A gente brinca, se morde e se diverte, mesmo com todas as nossas diferenças. Lá no fundinho do meu barrigão, eu amo ela e se alguém perguntar eu vou negar até a morte que disse isso.


E quando eu já estava me acostumando com a nova rotina, a vida ficou bagunçada novamente e eu e a mamãe nos mudamos da casa dos meus avôs. Mas isso é história para outro dia…

Choque Cultural

Em 2009 eu tive a oportunidade de realizar um dos meus sonhos de infância, o de morar em outro país. Assim como a maioria dos meus desejos da época, me tornar uma atriz famosa, viajar o mundo, ter um pense bem da tec toy; essa era uma daquelas vontades muito intensas, porém distantes de acontecer. Mas, com o incentivo de uma amiga e depois de um ano e meio investindo meu magro salário da época na viagem, realmente conseguimos embarcar para nossa aventura na Austrália.

            Para marinheiras de primeira viagem, escolhemos um destino realmente desafiador. Talvez fosse mais rápido cavar um túnel na terra e cair do outro lado do mundo do que chegar lá de avião. Alcançar o no nosso destino foi mais difícil do que tirar o visto, e, acredite, se você acha que o visto americano é complicado, é porque nunca tentou tirar um de estudante australiano, até radiografia do pulmão eu tive que enviar à embaixada para atestar que não estava levando comigo a tal da tuberculose (aparentemente extinta na terra dos cangurus). O primeiro contato que tive com a cultura down under aconteceu algumas horas depois da minha chegada à casa da família onde eu me hospedaria, o pai nos levou para um jogo de rugby de um dos filhos. Ele tentou me explicar todas as regras enquanto a partida rolava, eu só acenava com a cabeça e dava umas risadas, mas, sinceramente, até hoje eu não faço a mínima ideia do que foi dito naquela conversa. Não me julgue! Você também acharia o manual completo do jogo dos montinhos um pouco complexo depois de mais de 40h de viagem sem descanso.

            Quando você pensa em Austrália o que te vem primeiro à mente? Além de cangurus e coalas, provavelmente seriam as praias, certo? Pois bem, eu e minha amiga moramos em Brisbane, uma cidade que não é litorânea. Então combinamos de fazer um bate volta em nosso primeiro final de semana na praia mais próxima, porém acordamos tarde e por isso deixamos nosso passeio para outro dia e optamos por visitar a praia artificial que beira o rio a qual os cidadãos locais tanto se orgulham em dar como referência. Pegamos o City Cat, meio de transporte fluvial muito popular na região, e em nossa travessia vi uma garrafa pet boiando nas águas calmas que navegávamos. Na hora, comentei com a minha amiga com certa ironia: “quem disse que não tem lixo nos rios da Austrália?” E como um passe de mágica, quase como se viesse para calar a minha boca, passou por nós (e pela garrafa) uma embarcação particular, o condutor a viu, deu ré, retirou a dita cuja do rio e voltou a seguir o seu caminho. É impressionante como atos tão simples podem ficar marcados por tanto tempo! Chegando ao nosso ponto, procuramos pelo destino no mapa disponível, porém como não conseguíamos nos localizar muito bem, resolvemos perguntar para uma senhora que passava por ali onde que ficava a praia artificial. O espanto da mulher me deixou um tanto quanto constrangida e comecei a indagar se estávamos no lugar correto, até perceber que não estávamos perguntando sobre a praia artificial e sim procurando por uma puta artificial. Esse episódio acabou me rendendo boas aulas com a mãe da família sobre a sutileza na pronúncia das palavras.

            Eu sofri vários choques culturais durante a minha estadia naquele país continente. Não posso afirmar que todos os australianos sejam assim, mas a família com a qual convivi era de uma pureza e integridade invejável. Assim que começamos a sair, a mãe da casa fez questão de etiquetar nossos celulares com nome e o telefone da casa dela, me explicando que, caso os perdêssemos, a pessoa que encontrasse poderia nos achar para devolver. Eram sempre as pequenas coisas que mais me impressionavam! Levei bronca por atravessar fora da faixa de pedestre em uma rua com quase nenhuma delas e sem movimento algum (e por demorar demais para atravessar nas mesmas, já que eu não tinha confiança de que os carros realmente parariam assim que eu colocasse meus pés nela e atrasei todo o trânsito com a minha indecisão). Também me chamaram a atenção por não usar o cinto de segurança no banco de trás do carro. Falando em veículos, foi difícil me acostumar com o volante do lado direito do carro, sempre me dava à impressão de que os mesmos estavam se movimentando sozinhos. Fiquei espantada por não precisar pagar a passagem do ônibus quando o mesmo atrasou seu horário em 10 minutos. Pegou-me de surpresa o caminhão de lixo já separar orgânico de reciclável, o tamanho das casas onde eu trabalhava, as pessoas não se importar que uma completa estranha cuidasse de seus filhos e ainda pagar muito bem por isso, limpeza da casa e banhos não serem tão essenciais assim, afinal, quem usou a piscina, não precisa ir para o chuveiro, já se lavou. A mesma lógica funcionava para as roupas no varal, para quê lavar de novo se tomou chuva? Só molhou, vai secar! Adorava não precisar pagar para entrar nas pubs e poder passar de bar em bar, mas detestava que meu ônibus encerrasse seu trajeto às 22h30min e depois disso nem sinal de outro transporte que não fosse um táxi super caro para uma estrangeira pobre. Minha raiva com o horário de funcionamento das coisas se estendia a praticamente tudo depois das 16h do Domingo, se você não comprasse o que precisava até esse horário, poderia esquecer encontrar depois. O sistema todo de regras parecia se basear na convicção que todos iriam cumpri-las. Se a cultura dos nativos era beber até cair, não tinha problema algum as meninas deitarem nas calçadas em frente às baladas com suas microssaias e bolsa à mostra, esperando o porre passar, ninguém mexeria com elas por isso. A cidade era dividida em zonas circulares, sendo o ponto de partida o centro comercial que estendia seus aros até os bairros mais afastados da região. O sistema de transporte urbano se baseava nessas zonas e quanto mais distante da zona 1 seu destino fosse, mais caro você pagaria na passagem (que era única para qualquer meio de locomoção). Porém os próprios passageiros compravam seus bilhetes para as zonas que queriam, não havia uma fiscalização, então, se você quisesse, poderia fazer como alguns brasileiros que conheci que pagavam o menor deslocamento (zonas 1-2) e seguiam trajetos até destinos mais distantes. É como o ditado diz: em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Eu só não sei ao certo se o deficiente, neste caso, era o malandro ou o sistema.            

Minha estadia na terra dos ornitorrincos e dos bichos mais mortais do planeta passou rapidamente e depois de presenciar como tudo parecia funcionar de forma adequada e respeitosa naquele lugar, eu voltei ao Brasil com uma sensação de tristeza, pois avaliei que poderíamos ser uma nação até melhor do que eles, já que possuímos recursos naturais e riquezas que a eles carecem, se não fosse a desordem e o total descaso que temos para com as regras e nossa própria sociedade. Há alguns anos, meu pai e dois irmãos australianos vieram me visitar aqui no Brasil e os levamos em um tour para conhecer a cidade de São Paulo. Durante essa breve visita, a família também sofreu com o tal choque cultural. Ficaram fascinados em como passávamos rápido de uma faixa para outra na Dutra ou como os motoqueiros passavam em cima da calçada de pedestre, na contramão, para encurtar o caminho. Em uma das noites eu levei os filhos para uma balada na zona sul, na volta, deixei minha amiga na casa dela na zona norte e voltei para Guarulhos por dentro da cidade. George viu que eu estava passando todos os sinais vermelhos e ele me perguntou o que significava aquela cor no Brasil, eu respondi que era o mesmo que na Austrália só que naquela hora da madrugada, naquele lugar, era muito perigoso ficar parado, poderíamos ser assaltados. Ele entendeu meus motivos, mas comentou que se fosse em sua cidade eu já teria levado umas dez multas, porque todos os semáforos tem radar. No outro dia, falando sobre isso com o pai, este disse com certo pesar que a Austrália era muito chata, muito cheia de regras e que todo mundo seguia tudo muito certinho. Os brasileiros eram mais livres. E essa constatação me fez perceber como tudo na vida é uma simples questão de perspectiva.

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O último trem

A plataforma apinhada de gente me causava inquietação. Também pudera! Era a última viagem do dia e sabe lá quando haveria outra. Ainda assim, era de se admirar que tivessem deixado tantos indivíduos suspeitos se misturarem às famílias de bem. Talvez tivessem perdendo o controle mesmo, o que era uma lástima! Um pouco de rédeas curtas nunca fez mal a ninguém. Mas com um povo tão desordeiro, seria mesmo difícil esperar qualquer ato de civilidade. Afinal, uma nação sem Deus no coração, não merece redenção. Já eram mais de onze horas e nenhum sinal de que íamos embarcar. A passarela cada vez mais cheia. Estava encantada com o vestido da mulher ao meu lado, certamente alta costura. Fiquei tentada em perguntar-lhe onde o havia comprado, mas logo percebi meu equívoco. As cores! As cores não estavam certas. Um tecido mais claro do que o tom de pele de alguém nunca era um bom sinal. Com certeza era uma imitação barata.

            – Ei, você! Seu vagão não é este.

            – Mas os últimos estão todos lotados e eu estou com uma criança de colo.

            – Sente no chão, vai pendurada, não me importa! Só saia daqui. E vá logo, antes que eu mude de ideia.

            A moça maltrapida se afastou do guarda, carregando seu filho em um dos braços enquanto, com o outro, arrastava uma mala pelo chão. E era por isso que nada funcionava. As pessoas só queriam coisas dadas, não faziam o mínimo para conquistá-las, depois reclamavam de suas sortes. Só porque estava com uma criança achava que merecia privilégios. Olhe o meu caso, não cheguei aonde cheguei dependendo dos outros ou de caridade, meu pai se esforçou muito para dar um nome à sua família. Que Deus o tenha! Embarquei e logo tomei meu lugar em uma cabine espaçosa e confortável. Sentei e Fifi rodou em meu colo por algumas vezes, até achar uma posição que lhe agradasse, logo dormiu. Segui viagem afanando seus pelos. Não era uma das melhores acomodações em que eu já estivera, porém era adequada para nós duas, o que de certo era um bônus, já que a viagem seria longa.

            Todos os dias eram praticamente iguais dentro do trem, eu passava a maior parte do meu tempo dentro da cabine sonhando em logo chegar ao destino prometido. De vez em quando passeava com Fifi por entre os vagões, mas nunca conseguimos ir até o final deles, em dado momento sempre havia um segurança que nos fazia retornar dizendo que mais ao fundo não era lugar onde damas devessem passear. Imaginei ser algum depósito, onde guardavam os mantimentos ou coisa parecida. Nunca mais vi a mulher com a criança, mas comprovei o que já pensava, pois em todos os vagões por onde passei as pessoas tinham seus lugares. As pessoas gostam mesmo é de falar e reclamar. Certa vez, eu estava saindo de minha cabine e quase fui atropelada por um jovenzinho que corria pelo corredor com uma trouxa na mão, seguranças o perseguiam. Algumas horas mais tarde o mesmo voltava, amparado por dois guardas. Estava com o rosto inchado e um dos olhos roxo. Ele ainda resistia, repetindo que só estava com fome, que não havia comida há mais de três dias. Fiz o que qualquer cristão faria, parei-os e disse:

            – Meu jovem, como pode estar faltando comida? O carrinho passa 4x por dia e até uns mimos acabamos recebendo, pois Fifi estava enjoada de sua ração e prontamente providenciaram carne para ela. Roubar e mentir são pecados, meu filho. Mas tome aqui, certamente você tem uma bíblia com você, anotei alguns salmos que podem lhe ajudar com o seu problema. E o que aconteceu com o seu rosto, em nome de Jesus?

            – Ele caiu. – um dos guardas respondeu prontamente.

            – Era de se esperar correndo dessa maneira. Vá em paz, meu filho e leia os salmos, farão bem para você!

            Afastei-me e os três seguiram seu caminho. Não fiquei tão confiante que o rapaz tenha me entendido, seu rosto parecia conter certa incredulidade. Uma pena! Pelo menos os dois guardas apreciaram o meu gesto, afinal estavam rindo quando partiram.

            Depois de tantos dias de viagem era quase certo que estaríamos chegando ao nosso destino, não fosse um pequeno atraso que tivemos. O trem ficou parado por dois dias, alegaram que havia sobrecarga, mas que já estavam regularizando a situação. Assim que voltamos a andar, perguntei a um dos seguranças como tinham resolvido o problema e ele me informou que tiveram que se livrar dos últimos vagões. Fiquei preocupada que com essa solução pudesse faltar comida, mas não, acabou vindo até mais.            

Talvez o que tenha acontecido posteriormente fora fruto da perda desses vagões. Quem pode saber? O certo é que nunca cheguei ao meu destino. O trem descarrilhou, sem motivo, sem aviso prévio, só aconteceu. Desceu por uma ribanceira e, enquanto o fazia, eu agarrei Fifi e me perguntava: “Aonde é que queríamos chegar mesmo?”.

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Pot Pourri pandêmico

Assim que o dia amanheceu”

Não houve luz ou calor

Trouxe incerteza,

Angustia

Preocupação e a doença

“Medo, que dá medo do medo que dá”

“Tá rebocado meu compadre

Como os donos do mundo piraram

Eles já são carrascos e vítimas

Do próprio mecanismo que criaram”

“Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas”

Que os rebeldes de boteco não levaram em consideração

Repetindo que:

“O tempo não para”, vamos “viver e não ter a vergonha de ser feliz”

Pois lhes digo,

para aqueles que chamam de covardes os ainda em reclusão

“você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui”

Sem me contaminar, preservando os meus e os seus

Essa, sim, é a verdadeira bravura, nesses tempos de vacilação

“Enquanto todo mundo espera a cura do mal”

Negacionistas e anti-vacinas seguem viajando

No “super fantástico, o balão mágico”

“Enquanto a loucura finge que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência”

Para os paranoicos o vírus continua

Nos seus livros, nos seus discos,

E onde você menos esperar

Ele estará”

Do you believe in magic?”

Os descrentes irão retrucar

Mesmo com hospitais que não param de gritar

(Help) I need somebody

(Help) not just anybody

(Help) you know I need someone

Help”

Os jovens não param o “Rock’n roll all night and party every day”

Com ninguém se preocupar

“O sangue anda solto”

Com mais de 400 mil mortes “ao descanso do patrão”

Que quando questionado sobre o problema, apenas diz:

“Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”

O governo seguindo no ritmo do “Tô nem aí, tô nem aí

Não vem falar dos seus problemas que eu não vou ouvir”

Faz com que famílias inteiras tenham “seus jardins da vida ressecados

Dos pés que plantaram Marias, nem Margaridas nasceram”

Enquanto o resto da população

“Permanece sem amor, sem luz, sem ar”

E os outros países, ao assistir esse show horrendo, se questionam:

“Que país é esse?”

Desculpe usar palavras repetidas,

Mas quais são as palavras que nunca são ditas?”

Compaixão

Humanidade

Reciprocidade

Empatia

Para você que é considerado “Maluco beleza”

Por ir contra a tudo que pelo planalto é anunciado

Eu deixo meu recado:

“É esse o vírus que eu sugiro que você contraia

Na procura pela cura da loucura

Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia”

Trechos de músicas utilizadas:

  • Oceano – Djavan
  • Miedo – Lenine e Julieta Venegas
  • As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor – Raul Seixas
  • A carta – Djavan
  • O tempo não para – Cazuza
  • Viver e não ter a vergonha de ser feliz – Gonzaguinha
  • A estrada – Cidade Negra
  • Paciência – Lenine
  • Super fantástico – Balão Mágico
  • Eu vou estar – Capital Inicial
  • Do you believe in Magic? – Lovin’ Spoonfull
  • Help – Beatles
  • Rock n’ roll all nite – Kiss
  • Que país é esse? – Legião Urbana
  • Caviar – Zeca Pagodinho
  • Tô nem aí – Luka
  • Flor de Liz – Djavan
  • Sem ar – D’Black
  • Quase sem querer – Legião Urbana
  • Maluco Beleza – Raul Seixas

Atribuição de Imagem

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E se ele falasse?

Alice estava incomodada, aquele não havia sido um dia fácil no trabalho, só queria ir para casa e tomar um longo banho, mas o ônibus demorava a chegar. Não havia cobertura onde esperava e as nuvens negras sobre sua cabeça anunciavam a tempestade que chegaria a qualquer momento. Estava sem guarda-chuva, que ótimo! Ela se sentou no banco do ponto e puxou o ar que entrou abafado por entre o tecido de sua máscara. No mesmo momento, um senhor que passava por ela soltou um espirro. Ele tentou abafá-lo com a mão, já que estava sem sua proteção, mas sem sucesso e um pouco constrangido, olhou para os lados e pediu desculpas. “De que adianta se desculpar agora, meu amigo? Seria mais educado de sua parte se estivesse usando a sua máscara.”, ela pensou, mas não disse nada, queria evitar confusão. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair e Alice levantou instintivamente sua cabeça para observá-los. Percebeu pequeníssimos pontos verdes, milhares deles, vagando pelo ar entre as gotas. Alguns juntavam-se a elas e alcançavam o chão mais rápido, outros permaneciam flutuando. Ela tentou aproximar-se de um dos pontos para observá-lo melhor. Parecia um bicho, talvez um inseto? Não, era algo diferente. Algo o qual ela nunca havia visto antes. O que era aquilo? Havia coroa em suas pontas?

               – Mas que merda é essa? – Não conseguiu se conter, soltando em voz alta.

               – Somos corona, somos corona – Os pontos anunciaram em uníssono, em uma sinfonia sincronizada.

               Alice olhou para os lados, queria saber quem estava falando com ela, mas todos naquele ponto estavam concentrados em seus celulares, aparentemente a ignorando com louvor.

               – Somos corona, somos corona. – Escutou novamente.

               Seus olhos arregalaram-se ao perceber que a resposta vinha daqueles pequenos pontos flutuando no ar a sua frente. A surpresa logo passou a desespero quando se deu conta do que aquilo significava. Abriu sua bolsa, pegou um borrifador que carregava dentro dela e começou a espirrar álcool para todos os lados. Vários dos pontos sumiram instantaneamente, mas muitos outros ainda estavam ali. As pessoas a sua volta estranharam o seu comportamento e afastaram-se discretamente, balançando as cabeças em reprovação.

               – Que foi? Não estão vendo? Estão em todos os lugares! – ela gritou.

               – Não adianta, só você pode nos ver ou ouvir. Se continuar a agir assim só pensarão que é louca – um dos pontos comentou, aproximando-se da menina. Ela soltou um grito abafado de pavor e borrifou o álcool diretamente nele, mas nada aconteceu, ele continuou ali.

               – Que maluca! – um garoto ao seu lado com fones no ouvido, comentou.

               – Eu não lhe disse?! – o vírus falou com um certo “sarcasmo”.

               – Ele está certo! Eu realmente endoidei. Meu Deus, sou maluca e vou ficar doente! Eu vou morrer! – disse em desespero, sentando-se novamente.

               – Ah, para de drama! Não vou te infectar, não enquanto você mantiver seus “poderes”, pelo menos.

               – Poderes? Isso está mais para uma maldição. Quem é que ia querer falar com algo como você? Aliás, o que são vocês? Você é mesmo ele?

               – Conheço muita gente que morreria para falar conosco: médicos, cientistas, e a lista continua… Você deve estar em negação, eu entendo. É muito para processar! Todos reagem de maneira similar. Mas se nesta altura do campeonato ainda não sabe o que sou, só posso concluir que estava vivendo em uma caverna. Sim, somos o coronavírus, aquele que causa a Covid-19. Nossa colônia recém saiu daquele senhor ali. – Ele foi para frente como se apontasse para o homem que acabara de espirrar. – Estou aliviado de ter saído, estava muito apertado ali. Não sei como ele ainda está de pé, há muitos de nós naquele organismo.

               – Isso não é real, isso não é real, isso não é real… – Alice recitava para si mesma em um frenesi.

               – Se você quer perder seu tempo negando o que está acontecendo, fique à vontade. Só lhe aviso que esta é uma oferta com prazo de validade, logo não poderá mais nos ver ou ouvir, então, se eu fosse você, aproveitaria a oportunidade.

               Alice saiu do transe com o que ele falou. Por mais louco que aquilo parecesse, e com certeza era, ele tinha razão. Estávamos em uma guerra há quase um ano contra aquele pequeno ser, haveria melhor oportunidade para desvendar finalmente seus mistérios?

               – Por quê? – foi o que conseguiu dizer.

               – Por que o quê? Por que o céu é azul? Por que as jacas, mesmo sendo enormes e pontudas, crescem no alto e não rasteiras como as melancias? Você tem que ser mais específica.

               – Por que estão aqui? Por que vocês começaram a existir? O que fizemos de errado para que vocês aparecessem?

               – Não somos novos, talvez sejamos mais velhos do que vocês. Quem sabe?! Vocês modificam, todos os dias, o planeta em que vivem. Desmatam, colocam fogo, estinguem espécies, poluem, acham que tudo que está na natureza, animal, mineral ou vegetal, está lá somente para seu bel-prazer. Pensou que esse modo de vida não traria consequências? O que fizeram de errado? Você me pergunta. Acho mais fácil enumerar o que estão fazendo de certo. Por que estamos aqui? Vou lhe responder com uma pergunta: o que faria se te expulsassem de onde mora?

               – Teria que encontrar outro lugar.

               – Exatamente.

               Alice calou-se por um instante, processando o que acabara de ouvir.

               – Mas o que vocês pretendem nos atacando? Querem acabar com a humanidade? Vocês mataram mais de um milhão e meio de pessoas no mundo todo.

               – Nem que tivéssemos planejado isso, não nos daríamos ao trabalho, pois do jeito que as coisas vão indo, vocês mesmos terão sucesso nessa empreitada. Veja bem, há um grande risco também para a minha espécie quando habitamos um humano, afinal vocês têm alguns meios eficazes de nos combater. Seria uma batalha sem propósito! Não que alguma tenha algum sentindo, mas guerra é coisa de humanos, não temos interesse nisso. Sempre coexistimos muito bem com outros animais, sem lhes causar danos, mas como cada corpo reage a nós, isso está fora do nosso controle. O que posso dizer é que não fomos feitos para habitar o seu organismo, nem é o que mais gostamos, mas não tivemos escolha, nos obrigaram a migrar e as consequências disso não podem recair sobre nossas coroas.

               A lógica fez com que Alice se sentisse contrariada. Como podia uma coisa insignificante daquelas dizer que a culpa era dos humanos?

               – Não acredito que não queiram acabar conosco.

               – E se não for a gente que queira? A Terra é um ser vivo e, assim como o seu organismo reage a nossa presença tentando nos combater como ameaças, ela pode estar fazendo a mesma coisa. Além do mais, vocês não se orgulham em dizer que são os únicos seres racionais por aqui? Isso, em parte, é verdade.

O garoto que estava ao lado de Alice elevou a mão que apoiava no banco para cumprimentar o amigo que acabara de chegar ao ponto.

– Cara, ainda aqui? – o recém chegado perguntou.

– Os ônibus estão demorando, acho que é por causa da chuva.

Alice notou que as mãos dos dois meninos estavam cheias de pontos verdes e se exaltou quando o novato as levou instintivamente aos olhos para coçá-los, forçando vários dos pontos a entrarem em suas mucosas oculares.

– Não! Não faça isso! – gritou exasperada.

Os dois olharam surpresos para ela e o garoto que já esperava há algum tempo no ponto puxou o outro de lado.

– Não liga para essa dai não, ela é maluca! Não faz muito tempo, estava jogando álcool em todo mundo aqui. – O outro deu risada. Os dois viraram a cara para Alice, ignorando-a e continuaram a conversar.

– Bem, as vezes eu tenho minhas dúvidas sobre vocês serem seres pensantes – comentou o vírus depois da cena que Alice, horrorizada, acabara de presenciar – Mas sobre nós, estão certos, não temos o poder de planejar, só existimos.

– Certo… – Alice comentou balançando a cabeça, tentando não pensar no menino que acabara de ser infectado pelo outro. – Temos muitos remédios que funcionam contra vocês, como a Cloroquina e a Ivermectina – completou, não prestando muita atenção ao que dizia.

O vírus se remexeu no ar, exaltado. Alice poderia jurar que se ele pudesse gargalhar o estaria fazendo naquele exato momento.

– Você acabou de me deixar em uma crise existencial. Eu tinha certeza de ser um vírus, mas agora já não sei mais. Será que sou um protozoário? Um verme? Um inseto? Ou um ácaro?

Novamente Alice notou ironia na frase do vírus. Seria possível que aquele ser pudesse ser sarcástico? Bem, o possível era algo relativo naquele momento, afinal ela estava falando com ele, não estava?

– Mas o tempo de vocês aqui está contado! – respondeu irritada. – Estamos desenvolvendo várias vacinas.  

               – Ah, essas sim são eficazes. São como bombas, dificilmente irão nos erradicar, mas causam um estrago enorme! – O vírus parecia desanimado. – Mas temos um ponto ao nosso favor neste aspecto: vocês não acreditam muito nelas, assim como não acreditam na gente, não é mesmo?

               Alice bufou. Ele estava certo novamente, pois nos últimos anos havia uma crença crescente de que vacinas eram feitas para manipular os homens e não para prevenir doenças.

               – Seu tempo está acabando, tem mais alguma coisa que queira saber?

               – Não estou conseguindo pensar em nada agora. – Ela parou um segundo e depois se voltou para o pequeno ser: – Algum conselho que possa me dar?

               – Por que eu lhe daria algum conselho? Para mim e para os meus está ótimo assim! Continuem ignorando nossa existência, encontrando pessoas, fazendo festas. Quem é que não gosta de uma boa festa? Comemorem bastante! Haja como se não houvesse amanhã, quem sabe um dia vocês não acertam?

                 E lá estava a ironia novamente, Alice estava começando a se acostumar com isso.

               – Nosso tempo acabou. Você não vai lembrar de mim ou da nossa conversa. Acredite, será melhor assim! Já tentamos fazer de outra maneira, mas não deu muito certo, a grande maioria das pessoas que lembraram acabaram inventando teorias absurdas sobre nós e de nada adiantou a experiência. Com sorte o seu subconsciente irá gravar algumas informações úteis para você e é assim que deve ser.               

Alice piscou e quando abriu os olhos novamente não havia nada além das gotas de chuva. Não sabia ao certo porque procurava alguma coisa no ar, mas não conseguia afastar a estranha sensação de que algo estava lá. Surpreendeu-se com o borrifador em suas mãos, não lembrava de tê-lo pegado. Ah, finalmente o ônibus dela estava chegando. Fez sinal e esperou pacientemente na fila para embarcar no veículo. Olhou para os dois adolescentes que conversavam no ponto de ônibus e, por algum motivo, sentiu uma urgência extrema de passar álcool gel nas mãos.

O pior surdo

É tempo de escutar.

As palavras,

Os pensamentos,

As necessidades e os anseios alheios.

O ouvir é passageiro.

Qualquer um com uma boa audição consegue,

Mas o escutar,

Ah, o escutar,

Esse não!

Precisa de compreensão, exatidão, interpretação.

Pode ser uma aliteração, assonância, paronomásia ou mesmo uma onomatopeia,

Se ouvidas e não escutadas, não são mais do que meras palavras.

E talvez seja por isso mesmo que o mundo está assim.

Todos querem falar, argumentar e escrachar suas ideias,

Mas ninguém quer escutar.

Ninguém compreende,

Ninguém entende.

Como pode a raça humana evoluir se perde a capacidade de escutar?

Se seu próprio semelhante é incompreensível,

Que dirá discernir o planeta a clamar?

Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver.

Do que podemos chamar, então, aquele que não quer escutar?

A seleção

Olá, pessoal! Como prometido, aí está o poema que eu me atrevi a escrever para apresentar no nosso encontro de escritores e leitores. Espero que gostem!!!

O vírus passa.

De mão em mão,

De coisa em mão,

De pessoa para pessoa.

Passa, de pessoa em mão.

Passa…

Isolamento se faz necessário.

Tempo de reflexão,

Solidão,

Planejamento ou simples espera?

Será regra?

Ou simples capricho de quem governa?

A economia não aguenta,

A vida anseia.

Mas mesmo com todas as adversidades que nos rodeiam,

De ministro em ministro,

Somos notícia negativa na mídia estrangeira.

E a economia? Será que com isso também não bambeia?

Não podemos parar!

Saiam as ruas! Não tenham medo.

Afinal temos um remédio milagroso.

A imunização de rebanho será nossa salvação!

Serão 2/3 da população infectados,

Dos quais, somente 1% serão descartados.

Mas, e daí?

Somente perecerão os mais debilitados.

Os fortes continuarão.

Isso não é seleção?

Natural.

Evolucionária.

Seria essa nossa soberania

ou pura e simples eugenia?

Lugar de Mulher

                Estes dias deparei-me com uma polêmica que houve na cidade envolvendo uma exposição de fotografias sobre o universo feminino e a prefeitura. Alguns quadros do acervo foram retirados por ordem do prefeito por conter, segundo suas palavras, “manifestações político-partidárias”. As fotos em questão eram do movimento “Ele não”, protesto que ocorreu durante as eleições do ano passado e que foi organizado por pessoas, em sua maioria mulheres, que não concordavam com as ideias e opiniões de um, até então, candidato à presidência. O ato da prefeitura gerou uma discussão: aquilo era ou não uma censura?

                Deixando de lado toda a questão da violação de direitos que o caso envolve, pois o tema já foi bastante debatido, eu gostaria de chamar a atenção de vocês para outro assunto. Que toda manifestação é política, isso é fato, já que elas ocorrem quando um grupo vê seus direitos feridos e luta por eles. Mas dizer que o movimento “Ele não” era partidário? Será? Penso que a indignação daquelas que se manifestaram sempre foi contra as ideias retrógadas, machistas e misóginas proliferadas e não contra um candidato ou partido em específico. É lógico que o alvo acabou sendo o presidencial em questão, já que o mesmo era quem escrachava tais preceitos, porém acredito que a reação seria a mesma qualquer que fosse o candidato ou partido que apoiasse tais ideias.  A questão sempre foi ideológica e não partidária. Então, o ato de retirar da exposição justamente as fotos que retratam tal movimento não seria, além de censura, uma represália contra as mulheres? Se o conjunto de obras relatava o universo feminino, por que o mesmo não poderia conter fotos de mulheres lutando pelo seu direito de não serem inferiorizadas ou ridicularizadas? Ou o universo feminino somente se limita à gestação, beleza e sensibilidade!?  Será que não nos cabe este papel?

               Cada indivíduo inserido em uma sociedade sempre foi definido de acordo com a função que ele, em algum momento de sua vida, passaria a exercer dentro da mesma, e as mulheres não fogem à regra. Lá nos primórdios da humanidade, quando tudo ainda era mato, nossos ancestrais, os hominídeos, viviam por extinto, assim como os animais. Então basta observar grupos das mais variadas espécies para perceber que esta divisão de tarefas já era uma verdade dentro da nossa história. Depois de várias evoluções, o Homo passa a ser Sapiens e com o crescimento do cérebro vem também a noção de solidariedade própria da família. Os casais passam a ser mais estáveis e a cuidar junto dos filhos, que deixam de serem crias. O homem era nômade e vivia em grupos pequenos, sendo o sustento gerado da caça e coleta. Porém, ao contrário da crendice popular, a função de prover o alimento era trabalho de todos, independentemente do gênero. Apesar de os homens da época, comumente, caçarem, isso não significava que mulheres e crianças não pudessem participar. Além disso, a coleta, que era feita majoritariamente por mulheres, compunha 70% da alimentação daquele grupo. Por isso, a ideia de que era função do homem prover e das mulheres somente cuidar dos filhos ou procriar é tão errônea quanto dizer que a Terra é plana. Então, se os primeiros Sapiens já eram tão igualitários, como retrocedemos tanto nesta questão?

           Para responder esta pergunta teríamos que transcorrer por toda a parte sociológica da humanidade, o que nos demandaria muito tempo e conhecimento. Porém, é certo afirmar que a mulher foi subjugada e suprimida de seus direitos como ser pensante ao longo dos anos. Independente de no que recaia a “culpa”, seja ela política ou religiosa, o fato é que a figura feminina acaba tornando-se um alvo constante de perseguições por toda a história da humanidade. Com isso, sua imagem de companheira é deteriorada à mera posse de seu parceiro. Sua utilidade na sociedade passa a ser somente procriar e cuidar do lar, sem direito a opiniões ou desejos. A crença de que a mulher deve se por em seu devido lugar é passada de geração a geração, enraizada tão profundamente na sociedade que até mesmo as próprias mulheres compactuam deste pensamento. Isso acontece por anos a fio, até que as primeiras manifestações a favor do direito da mulher ao voto começam, balançando novamente as estruturas de toda a história.

                Então, lutar por seu direito de ir e vir, de poder pensar, manifestar, criar e ter seu próprio espaço, enfim, de ser tratada como um exemplar da espécie humana como igual faz tanto parte do universo feminino quanto a maternidade. Pensar o contrário seria ressaltar o que queremos tanto, com a nossa voz, acabar.

Qual o motivo?

              Ontem, antes de ir dormir, resolvi dar uma olhada nas notícias e acabei me deparando com uma reportagem sobre uma mulher que havia sido espancada por um homem em uma casa noturna aqui em São Paulo. O caso por si só já me chamou a atenção, porém, confesso que o fato de o mesmo ter ocorrido em um lugar que conheço e que já frequentei no passado, aguçou ainda mais minha curiosidade.  Li toda a matéria e nela a vítima reclamava, principalmente, da falta de assistência oferecida pela casa em tal situação. Eram por volta de quatro horas da manhã quando ela, os amigos e o namorado resolveram ir embora do local, porém, já na saída, a mulher lembrou-se que havia esquecido um casaco na mesa e voltou para buscá-lo, foi quando tudo aconteceu: outra frequentadora do lugar a puxou pelo cabelo e um homem a espancou até que ela perdesse a consciência. Não ficou claro o motivo da agressão, a vítima não sabia se havia esbarrado sem intenção em algum deles ou se acharam que ela queria roubar alguma coisa, já que estava procurando por seu casaco.

                Fiquei revoltada com a situação exposta e por isso caí na besteira de ler os comentários no post criado pela própria vítima em uma rede social. Foi aí que perdi o sono de vez. Então, fica a dica: nunca leia comentários se não quiser passar nervoso! Apesar da minha decepção, não serei injusta, afinal muitas pessoas se solidarizaram com a situação da menina proferindo palavras de apoio, justiça e dando conselhos do que ela deveria fazer sobre o assunto e, felizmente, posso dizer que estes tenham sido a maioria, então, ainda temos salvação! Mas é claro que, como sempre, lá também estavam comentários absurdos ridicularizando a situação ou usando a mesma como argumento para justificar a liberação do porte de armas; e ainda tinham aqueles que faziam com que a vítima se tornasse a culpada. Do meu ponto de vista, todos eles estão tão errados em tantos níveis que se eu debatesse sobre cada um destes argumentos provavelmente este texto viraria um livro. Então, por hora, vou focar somente na culpabilização da vítima. “Mas qual foi o motivo da agressão?”, “Alguma coisa aconteceu, essa história está muito mal contada!”, “Ela deve ter feito alguma coisa, ninguém apanha do nada!”, “Se tivesse em casa, isso não teria acontecido…”, estes, e outros comentários semelhantes, pipocavam no post.

                Fiquei me perguntando qual seria um bom motivo que justificasse uma pessoa espancar outra ao ponto de deixá-la inconsciente, com hematomas, um dente quebrado e um corte na boca que precisou de seis pontos? Mas não consegui pensar em nenhum argumento que, dentro daquela situação, tornasse aquele ato criminoso em algo aceitável. Claro que em situações extremas de ódio como a outra pessoa ter matado, estuprado ou sequestrado alguém que você ama, qualquer um seria passível de tal violência, porém, aparentemente, não foi o que ocorreu na casa noturna, já que somente a vítima saiu machucada. O que aconteceu ali foi um ato de covardia de uma pessoa que se considera superior e mais forte atacando alguém que ele julgue ser mais fraco. Então, que diferença faria se a vítima tivesse provocado ou mesmo pedido, literalmente, para apanhar? A reação do agressor seria menos horrenda se houvesse um motivo que a justificasse como um xingamento? A vítima realmente mereceria ter o rosto deformado dependendo do que tivesse feito ou falado a ele? Vejam que nem estou entrando no mérito do “machismo” aqui, apesar de o agressor ter sido um homem e ter batido em uma mulher sem motivo aparente, fazendo com que o ato, por si só, configure-se, sim, como tal. O que estou debatendo aqui é a necessidade das pessoas em justificar o ato do agressor. Do meu ponto de vista, mesmo que fosse uma briga entre mulheres, nada na situação descrita tornaria correta tal violência. Então para que preciso saber se a vítima xingou a mãe do agressor, esbarrou em seu braço ou mesmo roubou o seu cigarro favorito? Talvez tais justificativas sirvam para a justiça como atenuantes ou agravantes do crime cometido, mas, mesmo nesta situação, o ato não deixa de ser uma transgressão.

                A internet e, principalmente, as redes sociais abriram um espaço no mundo o qual antes não havia, dando voz a todos independente de suas opiniões, ideologias, crenças, modo de ver e levar a vida. E isso de uma forma geral é ótimo, mas sem empatia ou senso crítico, os argumentos acabam tornando-se somente agressões vazias e sem qualquer fundamento, mostrando o quanto nossa sociedade ainda é estereotipada e preconceituosa. Não justifique a violência e não ache que ela só acontece com determinados grupos e pessoas. Hoje a vítima pode ter sido esta moça, mas e se amanhã for você? Qual seria o motivo?