Em 2009 eu tive a oportunidade de realizar um dos meus sonhos de infância, o de morar em outro país. Assim como a maioria dos meus desejos da época, me tornar uma atriz famosa, viajar o mundo, ter um pense bem da tec toy; essa era uma daquelas vontades muito intensas, porém distantes de acontecer. Mas, com o incentivo de uma amiga e depois de um ano e meio investindo meu magro salário da época na viagem, realmente conseguimos embarcar para nossa aventura na Austrália.
Para marinheiras de primeira viagem, escolhemos um destino realmente desafiador. Talvez fosse mais rápido cavar um túnel na terra e cair do outro lado do mundo do que chegar lá de avião. Alcançar o no nosso destino foi mais difícil do que tirar o visto, e, acredite, se você acha que o visto americano é complicado, é porque nunca tentou tirar um de estudante australiano, até radiografia do pulmão eu tive que enviar à embaixada para atestar que não estava levando comigo a tal da tuberculose (aparentemente extinta na terra dos cangurus). O primeiro contato que tive com a cultura down under aconteceu algumas horas depois da minha chegada à casa da família onde eu me hospedaria, o pai nos levou para um jogo de rugby de um dos filhos. Ele tentou me explicar todas as regras enquanto a partida rolava, eu só acenava com a cabeça e dava umas risadas, mas, sinceramente, até hoje eu não faço a mínima ideia do que foi dito naquela conversa. Não me julgue! Você também acharia o manual completo do jogo dos montinhos um pouco complexo depois de mais de 40h de viagem sem descanso.
Quando você pensa em Austrália o que te vem primeiro à mente? Além de cangurus e coalas, provavelmente seriam as praias, certo? Pois bem, eu e minha amiga moramos em Brisbane, uma cidade que não é litorânea. Então combinamos de fazer um bate volta em nosso primeiro final de semana na praia mais próxima, porém acordamos tarde e por isso deixamos nosso passeio para outro dia e optamos por visitar a praia artificial que beira o rio a qual os cidadãos locais tanto se orgulham em dar como referência. Pegamos o City Cat, meio de transporte fluvial muito popular na região, e em nossa travessia vi uma garrafa pet boiando nas águas calmas que navegávamos. Na hora, comentei com a minha amiga com certa ironia: “quem disse que não tem lixo nos rios da Austrália?” E como um passe de mágica, quase como se viesse para calar a minha boca, passou por nós (e pela garrafa) uma embarcação particular, o condutor a viu, deu ré, retirou a dita cuja do rio e voltou a seguir o seu caminho. É impressionante como atos tão simples podem ficar marcados por tanto tempo! Chegando ao nosso ponto, procuramos pelo destino no mapa disponível, porém como não conseguíamos nos localizar muito bem, resolvemos perguntar para uma senhora que passava por ali onde que ficava a praia artificial. O espanto da mulher me deixou um tanto quanto constrangida e comecei a indagar se estávamos no lugar correto, até perceber que não estávamos perguntando sobre a praia artificial e sim procurando por uma puta artificial. Esse episódio acabou me rendendo boas aulas com a mãe da família sobre a sutileza na pronúncia das palavras.
Eu sofri vários choques culturais durante a minha estadia naquele país continente. Não posso afirmar que todos os australianos sejam assim, mas a família com a qual convivi era de uma pureza e integridade invejável. Assim que começamos a sair, a mãe da casa fez questão de etiquetar nossos celulares com nome e o telefone da casa dela, me explicando que, caso os perdêssemos, a pessoa que encontrasse poderia nos achar para devolver. Eram sempre as pequenas coisas que mais me impressionavam! Levei bronca por atravessar fora da faixa de pedestre em uma rua com quase nenhuma delas e sem movimento algum (e por demorar demais para atravessar nas mesmas, já que eu não tinha confiança de que os carros realmente parariam assim que eu colocasse meus pés nela e atrasei todo o trânsito com a minha indecisão). Também me chamaram a atenção por não usar o cinto de segurança no banco de trás do carro. Falando em veículos, foi difícil me acostumar com o volante do lado direito do carro, sempre me dava à impressão de que os mesmos estavam se movimentando sozinhos. Fiquei espantada por não precisar pagar a passagem do ônibus quando o mesmo atrasou seu horário em 10 minutos. Pegou-me de surpresa o caminhão de lixo já separar orgânico de reciclável, o tamanho das casas onde eu trabalhava, as pessoas não se importar que uma completa estranha cuidasse de seus filhos e ainda pagar muito bem por isso, limpeza da casa e banhos não serem tão essenciais assim, afinal, quem usou a piscina, não precisa ir para o chuveiro, já se lavou. A mesma lógica funcionava para as roupas no varal, para quê lavar de novo se tomou chuva? Só molhou, vai secar! Adorava não precisar pagar para entrar nas pubs e poder passar de bar em bar, mas detestava que meu ônibus encerrasse seu trajeto às 22h30min e depois disso nem sinal de outro transporte que não fosse um táxi super caro para uma estrangeira pobre. Minha raiva com o horário de funcionamento das coisas se estendia a praticamente tudo depois das 16h do Domingo, se você não comprasse o que precisava até esse horário, poderia esquecer encontrar depois. O sistema todo de regras parecia se basear na convicção que todos iriam cumpri-las. Se a cultura dos nativos era beber até cair, não tinha problema algum as meninas deitarem nas calçadas em frente às baladas com suas microssaias e bolsa à mostra, esperando o porre passar, ninguém mexeria com elas por isso. A cidade era dividida em zonas circulares, sendo o ponto de partida o centro comercial que estendia seus aros até os bairros mais afastados da região. O sistema de transporte urbano se baseava nessas zonas e quanto mais distante da zona 1 seu destino fosse, mais caro você pagaria na passagem (que era única para qualquer meio de locomoção). Porém os próprios passageiros compravam seus bilhetes para as zonas que queriam, não havia uma fiscalização, então, se você quisesse, poderia fazer como alguns brasileiros que conheci que pagavam o menor deslocamento (zonas 1-2) e seguiam trajetos até destinos mais distantes. É como o ditado diz: em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Eu só não sei ao certo se o deficiente, neste caso, era o malandro ou o sistema.
Minha estadia na terra dos ornitorrincos e dos bichos mais mortais do planeta passou rapidamente e depois de presenciar como tudo parecia funcionar de forma adequada e respeitosa naquele lugar, eu voltei ao Brasil com uma sensação de tristeza, pois avaliei que poderíamos ser uma nação até melhor do que eles, já que possuímos recursos naturais e riquezas que a eles carecem, se não fosse a desordem e o total descaso que temos para com as regras e nossa própria sociedade. Há alguns anos, meu pai e dois irmãos australianos vieram me visitar aqui no Brasil e os levamos em um tour para conhecer a cidade de São Paulo. Durante essa breve visita, a família também sofreu com o tal choque cultural. Ficaram fascinados em como passávamos rápido de uma faixa para outra na Dutra ou como os motoqueiros passavam em cima da calçada de pedestre, na contramão, para encurtar o caminho. Em uma das noites eu levei os filhos para uma balada na zona sul, na volta, deixei minha amiga na casa dela na zona norte e voltei para Guarulhos por dentro da cidade. George viu que eu estava passando todos os sinais vermelhos e ele me perguntou o que significava aquela cor no Brasil, eu respondi que era o mesmo que na Austrália só que naquela hora da madrugada, naquele lugar, era muito perigoso ficar parado, poderíamos ser assaltados. Ele entendeu meus motivos, mas comentou que se fosse em sua cidade eu já teria levado umas dez multas, porque todos os semáforos tem radar. No outro dia, falando sobre isso com o pai, este disse com certo pesar que a Austrália era muito chata, muito cheia de regras e que todo mundo seguia tudo muito certinho. Os brasileiros eram mais livres. E essa constatação me fez perceber como tudo na vida é uma simples questão de perspectiva.
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