Depoimento de uma Autora

Tudo começou com um sonho, e não estou usando aqui uma figura de linguagem, foi, literalmente, um sonho. Daqueles tão vívidos que ficam na nossa mente ainda por muito tempo depois que levantamos da cama. Coincidentemente, na mesma época, eu estava escrevendo um “diário” com uma porção deles, anotava todos aqueles os quais me lembrava, mesmo que fossem somente pequenos fragmentos. As exatas palavras que usei para começar o meu registro deste sonho em específico foram:

            ”Preciso relatar esse sonho, porque ele foi como um filme… muito parecido! Acordei várias vezes durante a noite ainda sentindo as sensações que ele me trouxe (medo, frio, etc) e sempre que voltava a dormir, retornava a ele, não perdi a sequência.”

Porém este foi diferente dos demais, eu estava animada, não conseguia tirá-lo da cabeça e só anotá-lo não havia sido o suficiente, minha mente ainda estava inquieta. Foi quando eu pensei: “Vou escrevê-lo como uma narrativa!” e foi assim que nasceu o prólogo do que mais tarde, para a minha surpresa, se tornaria um livro. O mais engraçado foi que, depois disto, aquilo não era mais o meu sonho e sim uma história com outros protagonistas e eu queria mais! Queria saber como começou, o porquê de tudo aquilo, o que aconteceu depois e quem eram aquelas pessoas; então continuei a escrever. Eu precisava de personagens, muitos deles! Pensei exatamente no que queria e fui atrás de cada um destes indivíduos: suas nacionalidades, nomes e características. Jovens adultos atrás de uma conquista, com personalidades diferentes e conflitantes, mas que acabariam encontrando um laço dentro de um objetivo em comum. E é nesta parte do depoimento que vem uma curiosidade: o único deles que migrou do meu sonho para a história foi John, todos os outros surgiram com a própria. Ele é uma chave importante dentro do enredo e talvez tenha sido meu guia desde o começo. Com os personagens criados, o resto fluiu naturalmente: cenários, conflitos; o enredo em si. As ideias vieram como uma enxurrada e eu precisava organizá-las se quisesse que algo saísse daquilo tudo. Sempre achei importante o vínculo que alguns autores criam entre seus personagens e quem está consumindo a trama, pois, pessoalmente, acho que é isso que traz a emoção para a mesma; é o que faz você torcer pelo mocinho, se apaixonar pela princesa, desejar a morte do vilão, e foi por isso que resolvi começar minha história por ai. Acredito que quem já teve a oportunidade de ler o livro percebeu essa progressão dentro do conteúdo, um começo mais ameno com apresentações, explicações e descrições do dia a dia, e uma trama que vai esquentando a medida que coisas inesperadas acontecem com aqueles cujo o leitor já tem um envolvimento. No início, eu não imaginava no que tudo aquilo se tornaria, eu só queria dar vazão às ideias que estavam surgindo e, quando dei por mim, eu tinha páginas e mais páginas escritas com aquele material, foi naquele momento que tive a consciência de que sim, aquilo era um livro!

Se eu lhes dissesse que o processo foi sempre fácil, estaria mentindo! Tive muitos altos e baixos ao longo do percurso. Passei de momentos onde eu só queria saber de escrever, já que as ideias não paravam de brotar, para outros de total bloqueio. Comecei nos tempos livres, depois passei uma temporada em que transformei isso em prioridade e logo em seguida questionei o porquê de desperdiçar minha atenção e esforços naquilo, então deixei tudo de lado. Mas acabei retornando, uma, duas, três vezes! Porque algo sempre me chamava de volta. Pesquisei bastante, principalmente os conceitos básicos de alguns elementos essenciais da trama, como: viagens espaciais e seus treinamentos. Porém, sempre será um pingo de realidade em um oceano de ficção, pois o intuito quando procurei algum conhecimento não era o de informar e sim de trazer um pouco de veracidade ao conteúdo. Li e reli o texto mais do que assisti o filme Titanic, e quem me conhece sabe que foram muitas vezes! Perdi as contas de quantas alterações, acréscimos ou exclusões fiz dentro da história. Achei algumas partes geniais, já outras… nem tanto. Sempre escrevi para mim, pelo simples prazer de fazer. Contudo, em um determinado momento, peguei-me imaginando o que outras pessoas diriam se também tivessem a oportunidade de ler aquilo. Será que gostariam tanto quanto eu? Ou seria a única?

E depois de muito tempo, eu finalmente terminei! Lembro-me, como se fosse ontem, que quando coloquei aquele último ponto final senti um orgulho o qual jamais conseguiria explicar aqui sem que parecesse um drama de novela mexicana. Meu próximo pensamento foi: “E agora? O que faço com isso?”. Porque eu gostei e pensava que outros também poderiam se interessar, veio-me o desejo de compartilhar, então dei o manuscrito para algumas pessoas lerem. Eu não tinha grandes pretensões com este ato, somente queria saber outras opiniões. Mas, qual não foi minha surpresa ao receber tantos elogios e o incentivo de levar a história para frente? Muitos acreditaram mais do que eu mesma no potencial do livro e, com este gatilho, resolvi tentar seguir em frente. Mal tinha terminado de escrever minha obra e a inscrevi no prêmio Kindle, sem revisão, diagramação ou mesmo uma capa. Lógico que não tive a mínima chance de ganhar, mas valeu a experiência. Além de aprimorar um pouco o material durante o concurso, com revisão e diagramação básicas e uma capa, conheci muitos autores no processo e entendi melhor o mundo editorial. Continuei a vender o livro digital de forma independente na Amazon e investi nas redes sociais para divulgá-lo. Aventurei-me em águas que nunca antes havia explorado e achei sensacional. Neste ano, decidi que ia mandar o original para algumas editoras e assim fiz, até que uma delas interessou-se pela obra, fez uma proposta e fechamos um acordo.

Ainda estou engatinhando em um mundo que mal comecei a conhecer, mas digo, desde já, que está valendo muito a pena! Pois hoje, ao abrir uma caixa cheia com “meus” livros, criei um daqueles momentos que ficam para sempre registrados na memória. Não sei aonde isso irá me levar, mas estou ansiosa para ver!

Pulando Amarelinha

Do inferno ao céu eram dez casas. Um caminho relativamente longo para alguém com pernas tão curtas quanto Antônio. O menino ajeitou-se, mirou e jogou a pedra que segurava entre as mãos na primeira casa. Essa havia sido fácil, nem precisou fazer esforço para que o objeto parasse bem no meio do quadrado. Feliz com o feito, ele começou a pular.

O “um” era o ponto inicial, a origem de tudo. E quando seria isso exatamente? Não se sabe ao certo.Gravuras da brincadeira nos pavilhões de mármore nas vias da Roma antiga indicavam que ela havia sido inventada pelo povo romano. Porém, as primeiras referências concretas que temos sobre o jogo são datadas no século XVII.

Antônio passou bem pelos números dois e três, mas, ao chegar ao quatro, depositou muita força em seu braço e sua pedrinha foi parar para além do quadrado.

– Errou, Toni! Minha vez. Agora você vai ver como se joga! – a menininha com um longo rabo de cavalo na cabeça anunciou confiante.

Antônio amarrou um bico, pois, em sua opinião, a menina não sabia do que estava falando. Como é que alguém poderia não saber jogar aquilo? As regras eram simples: arremessar a pedra dentro do quadrado indicado, pular entre as casas até chegar ao topo sem pisar naquela que contivesse o objeto atirado e sem passar as delimitações das demais. Fazer o seu caminho de volta, pegar a pedra, sem cair, ao passar por sua casa e terminar o resto do percurso. Ao conquistar um número, você ia para o próximo e ganhava quem completasse o diagrama.

O menino logo percebeu o que Maria quis dizer quando assistiu ela passar graciosamente pela primeira, segunda, terceira, quarta, quinta e sexta casa de uma só vez. Para a sorte de Antônio, a garota desequilibrou-se enquanto tentava completar sua sétima jogada. Agora ele teria que correr, pois faltavam apenas quatro números para que a vitória de Maria fosse consagrada. Concentrou-se e passou por todas as casas até empatar com sua oponente e, assim que a ultrapassou, sorriu satisfeito. Não perderia para alguém que nem o nome correto da brincadeira sabia.

O nome do jogo era Marelle, de origem francesa. Os portugueses, achando que a palavra soava com o diminutivo de amarelo, começaram a chamar a brincadeira de Amarelinha. O que Antônio não sabia era que, apesar de ser este, o nome mais popular, havia variáveis dele em todas as regiões do Brasil. Pula macaco no nordeste, academia no Rio de Janeiro, casa da boneca no Ceará, sapata no Rio Grande do Sul ou maré em Minas Gerais. Até mesmo dentro dos países de língua portuguesa a variação se tornava presente, sendo, por exemplo, o jogo chamado de avião ou neca na Angola.

Antônio passou bem por todas as casas restantes e quase ganhou o jogo, mas quando estava terminando a volta da última casa, caiu e perdeu a vez. Maria soube aproveitar sua oportunidade com destreza e terminou os números que lhe faltavam em um piscar de olhos.

Do inferno ao céu eram dez casas. Se o paraíso quisesse alcançar, Antônio, de uma próxima vez, haveria de se esforçar.

O Candidato Honesto

Esta é a história de José, um senhor um tanto quanto ilustre em sua cidade, seja por sua simpatia ou generosidade. Dono de uma pequena quitanda localizada em uma esquina do centro comercial, seus produtos sempre foram de ótima qualidade; frutas e verduras tão frescas que, literalmente, saiam da horta e iam direto para as prateleiras. Conhecido por: “seu zé”, “dono da quitanda”,homem das frutas e verduras”, ou simplesmente pelo bom e velho“zé”. Contudo, apesar da prosperidade de seu pequeno empreendimento, não era isso o motivo de sua fama. Ele ali nasceu, cresceu, tivera seus amores e desafetos, casou-se e criara seus filhos;não conhecia outra vida, nunca havia saído daquelas terras e, talvez por isso, fosse tão engajado nos problemas da cidade e de seus conterrâneos. Não distinguia credo, raça ou classe social, sempre estava disposto a ajudar quem quer que fosse. Uma alma boa; era o que todos diziam. As pessoas da cidade tinham absoluta certeza de que, em qualquer que fosse o projeto social, a obra de caridade, o ato de bondade ou mesmo o milagre operado, a mão do homem das frutas e verduras estava presente. Sua notoriedade era tanta dentro da comunidade que, certo dia, alguém bateu em sua porta oferecendo-lhe uma candidatura à prefeitura da cidade. Á princípio, José rechaçara a ideia de tão estapafúrdia, porém, quanto mais a novidade era espalhada, mais apoio ele ganhava, o que fez com que o homem da quitanda reconsiderasse sua escolha.

A eleição fora uma das mais tranquilas já registradas na história da cidade, pois seu rival não tivera a mínima chance. Todos sabiam quem escolher e, segundo boatos, até mesmo o candidato da oposição no homem das frutas e verduras, sua fé depositou.

Os primeiros anos do mandato de José foram extremamente prósperos. Ele não se rendera a corrupção e nem aos desejos daqueles que não pensavam no bem comum, seguiu cuidando de suas obrigações do modo simples como sempre fez: sanando os problemas e ajudando a comunidade. Sua gestão fez com que a pequena cidade crescesse, trazendo novas oportunidades e com estas, outros desafios. O vilarejo já não era mais um lugar despercebido pelo mundo, atraía atenções e olhos gananciosos viram o seu potencial, fazendo de tudo para usufruir disso. Homens vestidos em seus ternos caros iam e vinham do escritório de José com propostas descabidas e destilando ameaças quando não conseguiam o que queriam. O comerciante não se rendera, apegara-se firmemente aos seus princípios, enfrentou todos que iam de encontro aos seus ideais, porém, como consequência, não conseguia mais desenvolver o seu trabalho, todos os seus projetos perdiam-se no meio de tanta burocracia e interesses pessoais. O pouco que conseguia passar pelo filtro da politicagem não era o suficiente para satisfazer a população, a qual, agora, sempre queria mais e nunca se dava por satisfeita. Seus colegas de administração, percebendo a decadência de sua influência perante a comunidade, aproveitaram a oportunidade para tentar corrompê-lo e adequá-lo ao sistema afim de conseguirem angariar algum benefício próprio. O prazer que o cargo lhe proporcionara no início não mais existia; vivia frustrado, pois sentia que estava deixando muito a desejar como pessoa e como prefeito.

Apesar de tudo, quando chegou nova eleição,José candidatou-se ao cargo uma vez mais. Tinha esperança de que, com mais tempo, pudesse resolver tudo aquilo que havia saído de errado no mandato anterior. Tomou a decisão pensando somente no bem estar de seu povo e no que ainda poderia fazer em prol de sua comunidade, entretanto, mal sabia ele que, se o objetivo era cumprir tais metas, essa haveria de ser a pior iniciativa que poderia ter tomado.Seus oponentes não mediram esforços para ganhar a corrida rumo ao poder; com todas as falsas acusações e propagandas difamatórias, José foi de salvador para escória em um piscar de olhos, mal teve tempo de pensar em uma estratégia para limpar o seu nome e já havia sido derrotado nas urnas.

O tempo passou e ele voltou a ser o famoso comerciante de frutas e verduras que a todos ajudava. Aos poucos a vida de José voltara aos eixos, tudo graças à curta memória do povo, o qual não mais se lembrava de seu mandato ou não se importava. Eventualmente as sugestões para que ele entrasse na política retornaram, mas agora José já sabia que não havia sido moldado para essa vida. Sua ingenuidade e integridade não o preparavam para todos os jogos de interesses que existiam dentro do meio. Sem dúvidas, o homem das frutas e verduras percebera que fazia mais pela cidade sendo simplesmente o dono da quitanda.

O Florescer

A princípio sou tímida, pequena e quase não me destaco. Também, não é para menos! Em meio a tantas outras formas, estruturas, aromas e belezas para serem vistas, quem é que notaria algo insignificante como eu? Sou tão frágil e imperceptível que fica até difícil saber o porquê da minha existência ou o meu propósito, nem eu mesma consigo entender!

As chuvas vieram. Isso deixou a terra úmida e fez com que eu me sentisse revigorada, minha impressão era a de que eu havia tomado uma bomba de vitaminas. O tempo agora está ameno. O calor gostoso do dia aquece cada parte de minha morada; eu cresço e começo a tomar forma. Ainda não sei quem sou, porém me sinto cada dia mais forte.

A vida é engraçada, não é mesmo? Até alguns dias atrás, eu passava despercebida, mas isso mudou com o meu desabrochar. Timidamente, me abri. Passo por passo, pétala por pétala. Descobri que tinha mais em comum com outros seres vivos do que eu havia imaginado. Alguns, lógico que cada qual a sua maneira, passavam por um processo semelhante, como as borboletas, que começam como um simples casulo e transformam-se em algo esplendoroso. Eu agora tinha forma, aroma e cores próprias. Já não precisava mais lutar pelo meu espaço, pois minha existência se destacava. Pequenos bichos vinham alimentar-se do meu néctar e levavam consigo algo que tempos depois descobrir ser pólen, o pó da vida. Que alegria foi descobrir que minhas inseguranças e incertezas eram todas infundadas, já que minha essência era perpetuar, e não havia propósito mais belo que este!

Fui associada à beleza, festividades e sentimentos. Seja adornando um ambiente especial ou no momento em que alguém expressa seus sentimentos mais profundos, eu sempre estou presente. Podem me achar piegas e careta, mas no fundo todas as mulheres me adoram. Essências como a minha são usadas e copiadas nos mais variados produtos, sejam eles de limpeza ou cosméticos. Da inexistência, virei essência. Do anonimato, virei mundial.

Seguimos fielmente o ciclo da vida. Esperamos pacientemente pela nossa vez, e quando esta chega, embelezamos parques e jardins com nossa presença. Você provavelmente poderá encontrar exemplares de minha espécie em todos os dias do ano, porém, é somente dentro do período correto que os mais belos florescem. E aqui no Brasil, nosso tempo finalmente chegou. Bem-vinda, primavera! É momento para suas flores embelezarem a estação.

Visita 129

O aniversário dela estava próximo. Sim, indo contra todas as minhas súplicas, aquela a qual eu não ousaria pronunciar o nome, em breve, faria mais um ano de vida. Minha esposa fez questão de me lembrar da data logo no início da semana, comunicando-me que já havia feito uma reserva em um restaurante para comemorar o grande dia. Confesso que tive dificuldades para entender o que Lúcia dizia, pois, em minha cabeça, o fato de minha sogra ter nascido não combinava em nada com algo grandioso e muito menos era motivo para celebração; pelo contrário, só a simples ideia já me causava calafrios. Por que tínhamos que fazer isso todo o ano? Por um acaso há festas para comemorar o aniversário de múmias de mais de trezentos anos do Egito? Pois é, estas sim deveriam ser celebradas. Afinal são peças importantes na história da humanidade. Não são como minha sogra, que de relíquia, só tem o velho mesmo.

Estávamos há mais de vinte minutos esperando por ela na porta do apartamento de uma amiga. Desta vez a digníssima resolvera não se hospedar em nossa casa durante sua temporada na cidade, alegando que não comíamos direito e que, por motivos de saúde, ela não poderia sair de sua dieta rigorosamente traçada. Anotei a informação mentalmente para planos futuros. Daqui para frente todas suas visitas seriam regadas com as melhores guloseimas que a cidade poderia oferecer: pizzas, hambúrgueres, cachorros quentes, e outras tantas comidas extremamente saudáveis. Não poderia reclamar! Pelo menos aquela pequena parte de minhas preces fora atendida. Onde estava aquela velha? Assim perderíamos a reserva no restaurante. A irritação deu lugar a uma esperança crescente, afinal, aquilo não era de todo ruim! Sem restaurante, sem jantar e, sem isto, eu não precisaria aturar a presença da jararaca por horas a fio. Quem sabe alguém lá em cima estaria olhando por mim e algo tivesse acontecido? Um escorregão na banheira que fez com que ela batesse a cabeça, ou um choque super potente ao ligar um aparelho na tomada; milagres podem acontecer! Mas para o meu infortúnio não fora dessa vez. Lá estava ela, equilibrando uma caixa nas mãos enquanto tentava fechar o portão.

– Desculpe-nos, senhor! Tentamos segurar sua mesa o máximo que pudemos, porém o restaurante está cheio e como já haviam se passado mais de quarenta minutos do horário tivemos que liberar a reserva – disse educadamente um funcionário na entrada do restaurante.

– Eu entendo, mas seria possível conseguir outra mesa? – perguntei.

– Sinto muito, mas estamos com fila de espera de mais de duas horas. Se não se importar, posso colocá-los na lista.

Um tremor percorreu por toda a minha espinha. Jantar com a mulher já era ruim o suficiente, mas ter que esperar horas a fio em sua companhia seria torturante! Aquele sujeito só poderia estar maluco ao sugerir isso, obviamente não entendia o tamanho do meu suplício.

– Tem certeza que não há como resolvermos isso de outra maneira? – eu implorei. Ajoelhar-me ia se fosse preciso.

– Não perturbe o rapaz, Leandro. Isso é tudo culpa sua! – Olhei para a jararaca em descrença. – Se você não fosse uma lesma lerda dirigindo não estaríamos passando por isso – ela emendou.

Balancei a cabeça. Como poderia dizer isso depois de nos fazer esperá-la pela eternidade na frente do prédio? Nem Senna chegaria a tempo!

– Tinha certeza que isso aconteceria. Você não presta para nada mesmo! E agora? O que vou fazer com o meu bolo? Até entrarmos ele irá derreter! Pois você pagará por meu prejuízo. Esse seu marido não tem compromisso com nada, minha filha… Onde já se viu? Bem que eu te disse que era melhor ter casado com Luís, esse sim era um rapaz direito, de família…

Ela continuou seu discurso pelo que me pareceram décadas! O rapaz da recepção tentou fazê-la parar por diversas vezes, mas sem sucesso. Olhou para a fila de clientes impacientes e voltou-se desesperado, suplicando-me uma ajuda silenciosa. Resignado e com pena do sujeito, dei de ombros. Ele despertara a besta, não havia nada a ser feito àquela altura. O rapaz respirou fundo e falou em alto e bom tom:

– Mas que sorte, minha senhora! Acabou de vagar uma mesa. Poderiam me seguir, por favor?

A velha parou de falar e olhou satisfeita para o rapaz. Escutei algumas palmas do lado de fora assim que adentramos o restaurante. O sujeito nos indicou a mesa e chamou um garçom de lado, sussurrando algumas instruções. Antes de nos deixar, o homem deu dois tapinhas solidários em meu ombro, olhando-me com compaixão. Comparado com a recepção, o jantar foi melhor do que eu esperava. Minha sogra estava em seu melhor momento, fez com que o garçom voltasse com sua comida, apenas três vezes. Seu recorde pessoal eram quinze em uma noite. Ela fez com que trouxessem o bolo e começou a enchê-lo de velas, quando não tinha mais superfície disponível para mais delas, ela finalmente parou.

– Mamãe, não era mais fácil ter comprado velas com os números que formam sua idade? Acho que não vão deixá-la acender tantas… – Lúcia argumentou, mas a megera somente balançou a cabeça.

– A Clara fez desse jeito no aniversário dela e naquele ano ela ganhou um dinheiro inesperado e o filho separou-se da mulher horrorosa que tinha. Tenho certeza que terei muito mais sorte que ela, pois essas até explodem!

Lúcia olhou incerta para mãe, mas não argumentou. Ajudou a mulher a acender as trezentas mil velas em cima do bolo. Não tínhamos nem passado do “nesta data querida” quando o alarme de incêndio do restaurante começou a soar e, imediatamente, os sprinklers foram ativados.

Deixei minha sogra na porta do apartamento de sua amiga, após sermos expulsos do restaurante. A mulher estava encharcada, com o cabelo todo bagunçado e a maquiagem barata escorrendo por seu rosto. Definitivamente as coisas não haviam saído como planejadas. Desta vez nem ela conseguiria arranjar uma forma de colocar a culpa dos acontecimentos da noite em mim. Seu olhar de cachorro sem dono, ao entrar no prédio, era impagável! Para a minha surpresa, peguei-me ansiando por seu próximo aniversário.

Ela e Ele – O pedido

Ela estava com frio e, por mais que tentasse, não conseguia fazer com que seus dentes parassem de ranger. Não obstante, um tremor percorria pelo seu corpo toda vez que um vento soprava mais forte. Nunca gostou do inverno, mas tinha que admitir que aquela viagem estava revelando-se, até ali, uma das melhores que já fizera.  Não sabia quanto tempo mais aguentaria esperar naquelas condições, já não sentia mais nenhuma das extremidades, fossem elas das mãos ou dos pés, porém, ele tinha pedido para que ficasse ali e, por mais que tivesse achado tudo aquilo muito estranho, ela obedeceu.

Ele, nervoso, ajeitava as velas. Já tinha conferido mais de mil vezes se as letras estavam na ordem correta, pois queria que tudo estivesse perfeito. O vento, o qual dificultava, e muito, a sua missão de deixar as chamas trepidando vivas, não estava em seus planos, mas com a ajuda do pessoal do hotel conseguiu organizar tudo dentro do seu agrado. Olhou o cenário uma última vez. O fogo em contraste com o chão branco coberto de neve produzia um efeito lindo. Ele nunca fora dado a atos de romantismo e se, em um passado distante, lhe falassem que estaria ali agora planejando aquela ocasião de tal maneira, ele simplesmente riria e diria “jamais”. Mas a beleza da vida sempre fora, justamente, o fato de nada ser constante. Respirou fundo, munindo-se de coragem. Estava na hora de buscá-la.

Ela o avistou ao longe. Pensou em lhe passar um sermão por tê-la deixado esperando por tanto tempo naquele frio, mas, quando o mesmo se aproximou, mal conseguia esconder o sorriso em seu rosto, e sua felicidade a contagiou. Ela corria de mãos dadas com ele a guiando para dentro da floresta novamente. O final de tarde já se fazia presente, o que será que ele estava aprontando desta vez? Por toda aquela viagem seu parceiro havia se comportado de uma forma estranha, estava agitado e ansioso, nem parecia o mesmo, com certeza, tinha algo em sua mente.

Ele não via a hora de mostrar a ela sua surpresa. Afinal, por mais que todas suas esperanças estivessem em uma resposta afirmativa, não fazia ideia do ela acharia daquilo. A incerteza bateu em seu coração, olhou para trás e encontrou com o olhar de sua amada, isso fez com que, imediatamente, todas suas dúvidas se dissipassem. Acelerou o passo, arrastando a moça consigo, não aguentando mais esperar. Assim que viu as chamas na clareira entre as árvores, parou, curvou-se sobre os joelhos e respirou, soltando um longo sorriso.

Ela não acreditava no que estava diante de seus olhos, milhares de velas dispostas no chão branco salpicado de neve iluminavam o ambiente com suas chamas, formando a mais clássica das perguntas: “Casa comigo?”. Ela olhou para o lado com olhos marejados em lágrimas; ele estava sobre um dos joelhos segurando, em sua direção, uma caixinha vermelha a qual continha um anel de brilhantes. A emoção do momento fez com que ela não conseguisse pronunciar uma única palavra, então acenou afirmativamente com a cabeça, sorrindo. Ele levantou-se pegou em sua mão trêmula, colocando o anel em seu dedo.

Eles entrelaçaram seus corpos em um abraço apertado e depois beijaram-se. Talvez aquele fosse o mais profundo elo já trocado entre os dois até então, pois naquele instante em um dia qualquer de inverno, haviam decidido que compartilhariam a vida juntos.

Mini-história: Conversa entre homens

Helder seguia devagar até o lugar onde achava que poderia encontrar Matheus. Já estava escurecendo, porém isso não o atrasava. Se aquela viagem tinha lhe ensinado algo, era que ele estava familiarizado com a geografia do lugar. O fato de ter sido tão fácil chegarem até a nave sem John para guiá-los, o assustava, pois aquilo era um sinal claro de que já estavam vivendo naquele planeta tempo suficiente para se acostumarem com o ambiente. Tudo bem que haviam se perdido inúmeras vezes e estavam muito além do cronograma inicialmente estipulado, porém, na noite anterior a sua partida, Helder quase desistira da empreitada com receio de estar arriscando a sua vida e a de seus amigos em uma jornada que poderia guiá-los a um caminho sem volta, então, do seu ponto de vista, se comparado com a alternativa, haviam se saído muito bem. No final das contas, saber que eram capazes de se virarem sozinhos, talvez tivesse sido o único proveito de toda aquela caminhada, já que não haviam conseguido encontrar nada de útil dentro da espaçonave para ajudar Adeline.

O céu passou do cinza avermelhado ao breu sem estrelas em um piscar de olhos, fazendo com que Helder dependesse ainda mais da tocha que trazia consigo. Pegou-se pensando no beijo novamente; ainda conseguia sentir os lábios quentes de Iris contra os seus. Deixou escapar um pequeno sorriso de contentamento. Talvez se ele não tivesse aparecido naquele momento, as coisas poderiam ter tomado um rumo diferente. Não! Não poderia iludir-se, pois mesmo que tivesse se deixado levar pelo momento, sempre soube, no fundo, que ela não corresponderia a sua investida, pois seu coração estava em outro lugar. E a reação de Iris ao flagrante só confirmou suas suspeitas. Agora, lá estava ele, indo atrás daquele por quem ela verdadeiramente nutria algo. Não precisou andar muito para que avistasse entre os rochedos a silhueta do homem que procurava e, assim que se aproximou, sentou-se, deixando uma distância confortável entre os dois. Matheus, sempre alerta, desta vez nem percebera a presença de Helder, tão mergulhado que estava em seus próprios pensamentos.

– A noite está estranhamente calma hoje! – Helder comentou despreocupado. Ele percebeu o corpo de Matheus contrair-se com o susto e logo em seguida, relaxar. Esperou por uma resposta, mas ela não veio. Então despretensioso, continuou: – Você tem um jeito incomum de demonstrar seus sentimentos…

Matheus virou-se e, emburrado, o encarou:

– O que acabou de dizer deveria significar algo?

– Claro que não! A não ser que sinta algo por ela… – Helder disse, sem desviar o olhar do desenho que fazia com os dedos na areia vermelha aos seus pés. Matheus arregalou os olhos por um momento, mas logo se recompôs e bufou.

– O que veio fazer aqui?

– Não é óbvio? Vim buscá-lo – o médico respondeu calmamente. Matheus soltou um sorriso de desdém e levantou-se, postando-se em frente a Helder.

– Não preciso de sua ajuda, sei muito bem me virar sozinho! Não deveria ter deixado as duas, é perigoso! Mas não espero que você entenda isso.

Helder finalmente levantou a cabeça, encarando o outro pela primeira vez desde que chegou.

– Não fui eu quem saiu a esmo por ai.

– Não saí a esmo, estou patrulhando! Alguém tem que fazer, já que outros, claramente, preferem se divertir – Matheus respondeu irritado. Helder sorriu provocativo.

– Então não te afetou em nada o que viu? Confesso que, para mim, é bom saber!

Uma sombra de fúria passou pelos olhos de Matheus e ele lançou suas palavras em um furor cortante:

– Eu não tenho nada a ver com o romance de vocês! – Engoliu em seco e depois, desviou o olhar. – Só acho que deveriam ser mais prudentes, aqui não é hora e nem lugar! – Voltou o olhar novamente para Helder. – Especialmente você! Afinal, foi quem acabou nos trazendo para esta jornada inútil! Não está contente em só perder Adeline? Porque, com certeza, ela não irá sobreviver! E ainda quer arriscar a vida de outros?

Pela primeira vez naquela conversa, Helder se descompôs. Levantou-se em um átimo, aproximando-se de Matheus. As chamas das tochas iluminavam as feições raivosas e o ressentimento estampado nas faces dos dois homens que se encaravam a poucos centímetros um do outro.

– Chega! Entendo que esteja frustrado, porém, não vou deixar que desconte em mim sua raiva, só porque eu tive a coragem de ser sincero com os meus sentimentos e fazer o que você não fez.

– Você não sabe do que está falando!

Helder respirou fundo, acalmando-se.

– Não planejei, simplesmente aconteceu! Mas mesmo que o fizesse, não há lugar e nem hora certa para nada. – Ele suspirou ressentido. – E pensar que, justamente você o qual não sabe aproveitar, tem a oportunidade. – Matheus olhou confuso para ele, mas Helder não se importou em fazer-se entender. – Talvez, antes de pararmos aqui, você nunca tenha sentido uma perda tão significativa em sua vida a ponto de lhe fazer questionar algumas atitudes. Mesmo assim, depois de tudo que passamos, não acredito que ainda não tenha aprendido nada com isso.

Helder olhou para Matheus e logo se arrependeu de suas palavras. Nos olhos do amigo havia uma sombra de tristeza profunda, a mesma que, nos hospitais, via nos olhares dos familiares aos quais contava que o pior havia acontecido com um paciente.

– Vou voltar. Não deveria ficar aqui sozinho, pode haver espectros – Helder anunciou.

Matheus apenas assentiu e sem dizer nada, seguiu os passos de Helder pelo deserto vermelho. Os dois eram habilidosos e mesmo com a pouca luz que tinham, não demoraram a chegar ao destino. Antes de se aproximarem da gruta, Matheus parou e pigarreou, chamando a atenção de Helder e quebrando o silêncio que mantiveram por todo o trajeto.

– Quer dizer que eu ainda tenho alguma chance? – ele perguntou em um sussurro inseguro. Helder sorriu, tal atitude resignada não combinava com o homem a sua frente.

– Isso não sou eu quem deve lhe responder – Helder disse, seguindo caminho e encerrando o assunto.

Pré-venda Entre Dois Mundos

Informações sobre a pré-venda do livro Entre Dois Mundos:

1 – O livro está custando R$ 50,00 e comprando agora você levará de presente uma xícara exclusiva da trama;
2 – Para comprar deixe um e-mail no comentário deste post que entraremos em contato e passaremos informações complementares como forma de pagamento, entre outras. Se preferir, entre em contato conosco mandando uma mensagem em nossas redes sociais: Facebook ou Instagram;
3 – Todos os livros e brindes serão entregues no dia do lançamento da obra;
4 – Como o livro ainda está na gráfica, a data do evento acima citado somente será definido com precisão após a impressão completa da obra e o recebimento da mesma. Calculamos que o lançamento ocorrerá entre meados de Outubro, começo de Novembro, porém, não se preocupem, pois os manteremos informados de todo o processo em nossas redes sociais;
5 – Assim que identificado o pagamento, o comprador receberá um cupom para que este seja trocado pelo seu exemplar do livro e o brinde no dia do evento;
6 – Um cupom é válido para a quantidade total de produtos adquiridos e o mesmo é intransferível, sendo somente autorizado ao comprador a retirada do livro no dia do lançamento;
7 – Cada livro comprado na pré-venda tem direito a uma xícara, portanto se o comprador adquirir mais de um exemplar automaticamente ganhará mais de um brinde;
8 – Não reservamos livros sem pagamento;
9 – Temos um número limitado de livros para a pré-venda;
10 – A pré-venda será mantida até um dia antes do lançamento ou até que os estoques acabem;
11 – Estamos dando preferência ao pagamento via depósito direto em conta bancária e para a entrega no dia do lançamento, porém, se houver interesse em adquirir a obra nesse período e, por algum motivo, necessitar de outra forma de pagamento ou não poder comparecer no dia do evento, mande uma mensagem para nós no privado que ficaremos felizes em verificar outras alternativas para você.

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De repente pai

Paulo estava em frente ao espelho tentando acertar o nó da gravata, enquanto ensaiava o que iria falar na reunião da empresa daquela manhã. “Droga! Isso ainda não está bom e eu já estou atrasado.”, resmungou. Quando finalmente se deu por satisfeito, pegou sua maleta e assim que alcançou a porta, escutou a campainha.

– Sr. Paulo Mendes? Sou Bete da assistência social. Tem um minuto? – a moça de meia idade e óculos parada em sua porta anunciou sem muita delonga.

– Na verdade eu estava agora mesmo…

–Você conhece a Aline Dantas? – a mulher interrompeu-o.

– Sim, é a minha ex. Algum problema com ela? – Paulo respondeu incerto.

– O senhor não deve saber, mas a Srta. Aline faleceu em um acidente de carro há algumas semanas e ela deixou instruções específicas para que a guarda de sua filha fosse dadaao pai, Paulo Mendes.

Paulo olhou atônito para a mulher a sua frente, o ar, de repente, faltando em seu pulmão. Ele largou a maleta no chão e afrouxou o nó da gravata.

– Deve haver algum engano! Eu não tenho notícias de Aline há mais de um ano e… Meu Deus! Aline está morta? – A mulher continuou a encará-lo sem se abalar. – Mas eu não posso ser o pai! Eu nem sabia que ela estava grávida e…

A mulher deu alguns passos para o lado e abriu espaço a um rapaz o qual trazia no colo uma linda criança vestida em um body rosa com uma tiara de laço na cabeça. A pequena menina sorriu para Paulo, abrindo e fechando as mãozinhas em sua direção.

– Sei que é muita informação para processar. Podemos entrar e conversar um pouco a respeito?

Paulo acenou mecanicamente com a cabeça, ainda encarando a pequena nos braços do rapaz. Abriu espaço para que os dois estranhos entrassem.

Lá estava ele sentado no sofá, encarando o pequeno bebê deitado na cadeirinha ao seu lado. “Onde estava com a cabeça quando aceitou que a menina ficasse em sua casa até as coisas se resolverem? Mal sabia dar nó em gravata, quanto mais cuidar de uma criança!”, pensou. A pequena esticou o braço e pegou o dedo de Paulo, balançando-o e rindo. Ele sorriu de volta e respirou fundo. Não poderia simplesmente largar a menina em um abrigo qualquer e, de qualquer forma, seria por pouco tempo, os avós já estavam atrás das papeladas para conseguir a guarda da criança.

– Ei! Seu nome é Bianca, não? Acho que vamos passar algum tempo juntos – ele disse sacudindo o dedo que a menina ainda segurava e a mesma sorriu.

Sentia-se mais animado, afinal, o quão difícil poderia ser cuidar de um bebê por algumas poucas semanas? Era só alimentar, trocar fralda, dar banho e colocar para dormir, não é mesmo? Uma pequena mudança em sua rotina não seria o fim do mundo.

Quem inventou os bebês definitivamente estava pensando na extinção da raça humana quando o fez, porque nenhuma pessoa, em sã consciência, iria querer outro depois de passar por tal experiência. Aquele ser era uma máquina de choro e fraldas sujas! Paulo estava exausto. Não dormia mais, seu desempenho no trabalho estava péssimo e sua vida social tinha sido reduzida a nada; tudo isso em apenas DUAS semanas! O poder destrutivo daquela miniatura de gente era impressionante. Ele não entendia como sua vizinha conseguia achar que Bianca era uma criança boazinha e adorável. Com certeza, a pequena meliante comportava-se enquanto estava sob os cuidados da moça e guardava toda sua energia e reclamações para quando Paulo chegasse em casa. Tudo devidamente orquestrado a fim de transformar sua vida em um inferno! Todos os dias, ligava desesperado para a assistente social a fim de saber como andavam os tramites da guarda de Bianca e sempre recebia a mesma resposta inconclusiva sobre o assunto.

As semanas viraram meses. Paulo agora entendia o que cada choro de Bianca significava: hora de comer, trocar a fralda, gases e só manha. Já sabia do que a menina gostava e do que desgostava. E conforme o tempo passava, menos trabalho a criança dava. Aprendeu a fazer papinha de bebê, a cantar para ela enquanto a ninava, a escolher as roupas certas para cada ocasião e temperatura. Encheu-se de orgulho quando viu que ela conseguia identificar formas geométricas, cores e tantas outras coisas mais. Parou de ligar tão constantemente para a assistente social, pois, de uma hora para outra, seu coração apertava toda vez que pensava em ter que deixar a pequena criança.

Paulo assistia, como agora era de costume, seus desenhos favoritos de infância com Bianca, e fazia questão de salientar à menina o porquê de os mesmos serem tão especiais e instrutivos;quando a menina começou a resmungar.

– Pa-pa, pa-pa… – ela disse enquanto esticava os braços para pedir colo.

– Do que foi que me chamou? – Paulo perguntou emocionado.

– Pa-pa, pa-pa… – a menina continuou. Paulo, emocionado, sorriu e puxou Bianca para os braços, onde a mesma aconchegou-se.

Na manhã seguinte, ele ligou para o escritório avisando que não iria trabalhar, já que cuidaria, com urgência, de alguns assuntos pessoais, pois, na noite anterior,havia se tornado pai.

Série Profissões: O lixeiro

Aquela era a parte da noite de que Murilo mais gostava. O vento frio batia em seu rosto enquanto, com um dos braços estendidos, dependurava-se na lateral do caminhão. O rapaz aproveitava aquele breve momentodo trajeto de volta àgaragem para pensar sobre a vida e renovar suas energias.

– Será que ainda tem café na salinha? – Murilo questionou enquanto guardava seu uniforme dentro do armário.

– Está louco, cara? Já é quase meia-noite! Não recomendo o consumo de cafeína nesse horário… – Jorge respondeu irônico e Murilo riu. –Estou tão cansado que não vejo a hora de chegar em casa e despencar na cama! – ele completou, colocando a mochila nas costas.

–Nem reparei que já era tão tarde! Ainda vou estudar, semana de provas…

– Um de nós tem que virar doutor, não é mesmo? – Jorge comentou batendo no ombro do amigo. – Boa noite de estudos, Murilão! Até amanhã. – Murilo acenou para o colega e Jorge retirou-se, rindo.

Murilo vivia com sua mãe e os irmãos em uma pequena casa na periferia da cidade. Logo que chegou, percebeu que haviam lhe deixado um prato de comida em cima da mesa da cozinha. Isso era ótimo! Estava faminto e a noite seria longa. Já estava acostumado a revezar seu tempo entre os estudos, o trabalho e os afazes domésticos, desde sempre fora assim.Era o filho mais velho de uma mãe solteira e por isso acompanhou de perto o sacrifício que a mesma fizera para que ele e todos seus irmãos tivessem o mínimo de oportunidades na vida.Desde pequeno fora um jovem ativo e de muitas ambições. Carregava as sacolas de compra das senhoras até suas casas, ajudava o dono da mercearia da esquina, dava aulas particulares para seus amigos, cuidava dos filhos de quem não tinha com quem deixa-los. Todos na vizinhança conheciam Murilo e sua disposição para ajudar e colocar a mão na massa. Se o trabalho era honesto, já sabiam que poderiam contar com seus serviços, ainda mais se isso lhe rendesse uns troquinhos. Mas, o que os outros poderiam ver como uma vida penosa para ele era, simplesmente, sua vida e a adorava. Sempre se sentiu capaz de fazer qualquer coisa e nunca deixou que nada, nem ninguém, lhe dissessem o contrário. Queria o que a maioria das pessoas quer: uma família, uma carreira, conhecer o mundo. E com isso em mente, na época do vestibular, passou noites em claro estudando e seu esforço valeu a pena, pois conseguiu entrar em uma das melhores faculdades de Direito do estado. Agora, só precisaria de um emprego fixo com o qual pudesse pagar as mensalidades.

Trabalhava na empresa de coleta de lixo há quase três anos e,apesar de todos os comentários pejorativos que já escutara ao longo do tempo sobre sua profissão edos preconceitos que sofrera com piadinhas e apelidos criados pelos colegas mais abastados de sua classe, tinha orgulho do que fazia. Era certo que estava lá por um objetivo, porém, mesmo que não fosse o caso, ainda assim pensaria da mesma forma. Além de trabalhar ao lado de pessoas muito boas, no fundo, achava digna de respeito a essência de sua tarefa. Afinal, se não houvesse ele e todos seus outros colegas de profissão, o que seria de todo o lixo do planeta?

E depois de muito andar na traseira do caminhão, competir com seus amigos quem coletava mais rápido ou ganhava mais caixinhas nas datas comemorativas, rir com seus colegas de alguns acidentes ocorridos no percurso e de coisas inusitadas que encontravam no lixo dos outros, e ainda, contar moedas para o café, o lanche, o ônibus, os materiais do curso e um poucomais café; finalmente Murilo se formou.

– Ei, Murilo, o que está fazendo? – Roberto perguntou impaciente, enquanto assistia o colega, em frente ao fórum, recolher do chão uma latinha de refrigerante que uma adolescente jogara e colocá-la em uma lixeira. – Pare de enrolar! O juiz só nos deu poucos minutos de intervalo. Virou lixeiro agora?

Murilo olhou para o rapaz e sorriu.

– Sempre fui!