Yvon – 3 anos antes

A Estação Espacial era o mais próximo que Yvon poderia chamar de lar nos últimos tempos. Ele já estava estacionado naquela base há oito meses e ainda faltavam mais algumas semanas para que ele pudesse retornar a Terra. Conhecia tudo como a palma de sua mão, mas também não havia muito que explorar no local, já que, apesar de ser um laboratório de alta tecnologia em órbita baixa terrestre, não era um espaço tão grande ao ponto de alguém se perder, ainda mais se este estivesse vivendo ali por tanto tempo. Sua missão era basicamente desenvolver pesquisas que em Terra seriam mais difíceis ou mesmo impossíveis de se executar e passar esses resultados para a base de campo. Yvon amava o que fazia, sempre gostou da sensação de liberdade que sentia ao estar no espaço, nem mesmo reclamava de ter que trabalhar em conjunto com sua base, como muitos ali faziam, pois até nisso tivera sorte, afinal sua parceira em Terra era uma grande amiga e extremamente habilidosa. Mesmo que agora Elissa não estivesse em seu melhor momento, sua mãe havia sido diagnosticada com uma doença terminal e ela estava tendo que lidar com muita coisa ao mesmo tempo, ainda assim não a trocaria por nenhum outro.

A estação sempre contava com uma equipe de três membros que de tempos em tempos era substituída por uma nova com o mesmo número de pessoas. Quando essas trocas ocorriam, as duas equipes, nova e antiga, conviviam por alguns dias até que todos os procedimentos fossem passados e todas as tarefas organizadas. Nestas ocasiões o convívio acabava se tornando um desafio, afinal todo espaço tinha que ser divido para o dobro de tripulantes. Todos corriam contra o tempo no laboratório, em algumas semanas a nova equipe seria enviada e tudo tinha que estar alinhado para que esta conseguisse seguir com as pesquisas sem grandes esforços ou atrasos, era crucial que tudo estivesse funcionando e em perfeita ordem até sua chegada. Yvon adorava estar em órbita, mas já contava os dias para finalmente estar na Terra, sentia falta da família e dos amigos, já tinha até elaborado alguns planos para o seu retorno. Ele estava em sua estação de trabalho concentrado em finalizar alguns dos procedimentos que começara uns dias atrás, quando um dos rapazes foi até ele tentar debater dados de uma das pesquisas em que trabalhavam, no final este acabou desistindo da empreitada. Quando Yvon se concentrava em uma tarefa era como se imergisse nela e nada mais a sua volta existisse, era difícil de desviar o seu foco ou chamar sua atenção quando estava envolto em suas obrigações, ainda assim, um bipe fino soava insistente há algum tempo, tentando tirar sua concentração, parecia que todos resolveram falar com ele justamente no momento em que estava concentrado em sua tarefa. Yvon sabia que era uma chamada direta da base terrestre, mas apesar do barulho estar começando a irritá-lo ele decidiu por bem ignorar o alerta, estava em um momento importante de suas análises, retornaria quando estivesse desocupado. O toque continuou a persistir até que uma tela de vídeo chamada abriu automaticamente no seu monitor.

– Yvon Petrov? – Um senhor de meia idade vestido em um terno preto e com os cabelos grisalhos devidamente arrumados em gel apareceu em sua tela de trabalho. Yvon não fazia ideia de quem era o sujeito, não se lembrava de tê-lo visto na base de comandos nenhuma vez sequer. Onde estava Elissa? Ele confirmou a identidade acenando com a cabeça, ainda incerto sobre do que se tratava aquilo. – Sou Mikhail Bikov, gerente dos projetos internacionais da agência. Estamos com uma missão urgente e de extrema importância e queremos que você faça parte da equipe.

– Que tipo de missão? – Yvon perguntou interessado. O departamento internacional nunca o havia procurado antes.

– As informações são sigilosas, por isso os detalhes serão passados pessoalmente logo que você chegar à base. – Yvon acenou concordando.

– Tudo bem. Estou voltando em algumas semanas, assim que estiver em Terra procuro o departamento internacional e…

– Não, já organizamos tudo para o seu retorno. Não conseguimos adiantar toda a tripulação, mas o seu substituto já está sendo enviado para a estação. – Yvon olhou surpreso para o homem que estava em sua tela. – Estamos no seu aguardo, Sr. Petrov, nos vemos dentro em alguns dias.

O Nascimento da Folia

Eu não tenho local e nem data de nascimento. Já passei em diferentes formas por vários lugares do mundo, nas mais variadas épocas. Representei diversas culturas e credos, fui dos pagãos aos cristãos. Não tenho preconceito, aceito qualquer povo, raça ou religião, onde me chamarem estarei lá para a festa começar. Nem daqui ou dali, de lá ou de acolá, sem lugar fixo onde me encaixar e sem fronteiras para me barrar. Eu sou folião, eu sou do mundo!

Já estive na Babilônia antiga e na Mesopotâmia, época em que eu tinha a mania de subverter os papéis sociais. Transformava prisioneiros em reis, humilhava soberanos em frente aos Deuses e transformava senhores em escravos. Se paro para pensar com clareza em toda minha trajetória eu chego à conclusão de que nunca deixei de ser assim, talvez nunca fora uma mania e sim parte da minha personalidade de fato, já que eu continuei a inverter papéis sempre que meu nome era clamado. Na idade média fiz jovens homens saírem às ruas vestidos de mulher fingindo ser habitantes da fronteira entre o mundo dos mortos e dos vivos, só para comerem e beberem de graça em residências alheias e ainda roubarem beijos das jovens que ali habitavam. As pessoas sempre me viram como um período de liberdade, onde poderiam ser o que não eram ou inventar um novo personagem, ainda hoje, todos aproveitam minha passagem e se transformam no que quiserem.

Quando estive em Roma e na Grécia fui festas que duravam dias, era regado de boa bebida e muita comida, havia diversas danças e rituais. Na época renascentista da Itália participei de teatros improvisados e acabei sendo muito popular por lá até o século XIII. Foram criadas canções em Florença para acompanhar os desfiles feitos em meu nome que até mesmo sustentavam carros decorados. Passei novamente por Roma e fui a Veneza, nestes locais as pessoas usavam máscaras brancas com capuzes que cobriam dos ombros a cabeça toda vez que estavam em minha presença. Era constantemente associado aos prazeres carnais e até mesmo a Igreja, sempre tão rígida, acabou se rendendo a mim transformando-me em um marco de liberdade antes do período de severidade religiosa relacionado a quaresma.

De tantas idas e vindas, de andanças e danças, acabei chegando ao Novo Mundo e foi na época colonial que fiz minhas primeiras aparições com o entrudo, uma festa portuguesa que era praticada por escravos em suas colônias. A cultura foi se transformando e moldando, passando de lugar em lugar e com isso vieram os cordões e ranchos, corsos e até mesmo escolas de samba. Posso dizer, com toda certeza, que viajei muito e ainda participo de tantas outras culturas, mas é em terras tupiniquins onde me sinto mais querido e popular, pois foi nelas onde tive a oportunidade de me manifestar em inúmeras formas. Afoxés, frevos e maracatus também se tornaram minha tradição e de marchinha em marchinha me transformei na maior manifestação cultural do Brasil. Não importa se você é adepto das folias ou só gosta mesmo é de curtir um bom feriado prolongado, porque a verdade é uma só, de um jeito ou de outro estou aqui e vim para ficar.

Já tive vários nomes: Saceias, Bacanais, Saturnálias ou Lupercálias e tantos outros mais; porém nenhum deles foi tão popular como o atual. Prazer, eu sou o Carnaval!

Elissa – 3 anos antes

Fechou as cortinas, mas mesmo assim deixou a janela entreaberta. Era raro fazer um dia tão bonito quanto aquele e queria aproveitar ao máximo o calor do Sol, porém sabia que a luz incomodava sua mãe. Elissa colocou a bandeja que trouxera consigo sobre a mesa, pegando uma colher do mingau na cumbuca e soprando com a boca para esfriar. Ajeitou para que a enferma ficasse sentada e com cuidado colocou a comida em sua boca, limpando com um pano a baba que eventualmente escorria.

– Desculpe-me o atraso Srta. Elissa, o trem teve uma falha e não consegui outro a tempo. – Uma senhora volumosa em roupas brancas e os cabelos bem presos em um coque alto entrava no quarto. – Deixe que eu termine isso para você – ela disse pegando a cumbuca das mãos da outra mulher e tomando seu lugar. Elissa foi até a porta.

– Não se preocupe com o atraso Kátia, fiquei sabendo da situação pelo noticiário. – Ela olhou de soslaio para a acamada e suspirou. – Hoje está um pouco mais difícil que nos outros dias para alimentá-la – ela completou tristonha, a enfermeira a olhou com ternura e acenou positivamente com a cabeça. – Preciso ir trabalhar. Qualquer novidade, por favor, me ligue.

Elissa não conseguia colocar os pensamentos em ordem, estava com a mente confusa e desatenta. Sabia que não podia continuar assim, tinha que arranjar um jeito de estar de volta ao jogo, coisas importantes dependiam dela naquele momento e era crucial que estivesse ali por inteira. A troca de equipes da estação espacial ocorreria em breve e ela ainda tinha muito que fazer para que isso acontecesse, não podia mais ficar naquela inércia.

– Desculpe! – Ela se ajeitou do trombo que dera no homem, não tinha percebido que ele vinha em direção oposta a sua no corredor. – A culpa foi toda minha, eu estava distraída e… – Elissa olhou para o rapaz alto de cabelos cor de fogo que sustentava aquele sorriso contido no rosto e lhe era tão familiar. – Yvon? Já voltou? Ah, Meu Deus! A equipe toda está aqui? Eu não acredito que eu me perdi no prazo e… – O homem a abraçou, interrompendo o seu histerismo.

– Já faz um tempo, não é mesmo Elissa? – ele disse apertando-a mais forte e depois a soltou. – Não se preocupe, eu voltei antes, tenho certeza que você ainda está dentro do prazo, nunca nos deixou na mão antes. – Ela soltou um sorriso débil, sem saber direito o que responder. – Parece que há um novo projeto que querem me colocar e estão com urgência, estou indo saber dos detalhes agora, mas pelo jeito será algo importante. – Elissa olhava abobada para o amigo, não prestava muita atenção ao que ele dizia. Apesar de estar feliz em revê-lo ficou com medo de que estivesse sendo indiferente a sua presença. – Bem, eu tenho que ir! Vamos nos encontrar mais tarde para colocar o papo em dia?

– Claro! Muito bom te ver Yvon – foi o que conseguiu responder. Por sorte parecia que Yvon não havia se importado com os seus modos, pois ele soltou um sorriso carinhoso antes de voltar a fazer o seu caminho, levando Elissa a fazer o mesmo. Quando já estavam afastados Yvon olhou uma última vez para a amiga e parou.

– Elissa… – Ela virou para trás ao escutar o seu nome. Ele a analisou por um tempo antes de continuar. – Como ela está? – finalmente soltou a pergunta e a amiga somente balançou a cabeça com um olhar triste, Yvon entendeu na mesma hora o que estava acontecendo. – Me avise se tiver algo que eu possa fazer por você! – Ela sorriu e não disse mais nada. Os dois voltaram a fazer os seus caminhos.

Naquela mesma noite a doença venceu a longa batalha contra a mãe de Elissa. Há um ano ela tinha sido diagnosticada com um tipo raro de câncer no pâncreas que lhe deu mais seis meses de vida. Ela lutou com bravura, até mesmo conseguiu ultrapassar as expectativas que lhe foram estipuladas, mas a doença foi implacável e quando viu que não teria mais condições de ganhar seu único pedido fora ter seus últimos dias no aconchego de seu lar. Elissa tirou alguns dias de licença após a morte da mãe, mas acabaram lhe pedindo para voltar antes em caráter de urgência. Todos que a encontravam no corredor diziam que sentiam muito e pediam desculpas por ela ter que trabalhar naquele momento, contudo ela achava que estavam lhe fazendo um favor, era muito melhor ter a mente ocupada naquele momento do que ficar em casa remoendo os acontecimentos. Uma das meninas que trabalhava no setor de tecnologia a chamou dizendo que alguns membros da diretoria a aguardavam na sala de reuniões. Elissa não sabia o que esperar do encontro, tinha consciência de que estava com alguns dos trabalhos mais importantes atrasados, porém todos sabiam da sua situação. Além disso, já havia se programado para entregá-los o quanto antes, não havia motivos para ser repreendida.

Ela olhava petrificada para todos os ocupantes da sala e ficou assim por algum tempo. Yvon pigarreou quebrando o silêncio.

– É muita coisa para ela processar no momento, com tudo o que aconteceu… – ele tirou os olhos da amiga e se voltou para a diretoria. – Podemos dar alguns dias para ela pensar no assunto? – ele completou. Na mesma hora a loira balançou a cabeça negando. Aquilo era loucura, uma insanidade, e era justamente o que precisava. Acordou do torpor e fixou o olhar no amigo.

– Estou dentro. Quando partiremos?

Vida de Solteira – Amigo do Facebook

Valentina estava animada desta vez, nem esperava que fosse ficar tão empolgada com algo tão inusitado, mas estava. Há umas três semanas, um rapaz a havia solicitado amizade no seu perfil do Facebook, ela não o conhecida, mas viu que ele era um amigo de uma colega de um curso que fizera há alguns anos atrás, então resolvera aceitar a solicitação. Parecia um sujeito encaminhado e era bonitinho então, por que não? E desde então os dois não paravam de trocar mensagens. Pensou em como era a vida, já estava há meses naquela porcaria de aplicativo e não tinha conseguido encontrar um cara decente até então e ai, do nada, aparece esse homem tão interessante em um lugar que sempre esteve. Ele já tinha até passado pelo teste do primeiro encontro, a ocasião tinha sido um sonho se comparada aos últimos poucos que tivera! Era por isso que tinha acabado de aceitar vê-lo novamente e a razão de estar tão animada.

Ele foi buscá-la em sua casa e seguiu para o cinema como haviam combinado. Seu celular, que estava fixado no suporte e mostrava o caminho que fariam, começou a tocar e rapidamente o rapaz puxou o aparelho para atender a ligação, não rápido o suficiente para que Valentina não visse o: “Mamãe ligando” piscando em sua tela. Ela achou engraçado o jeito como ele havia cadastrado o número de sua mãe no telefone, raramente ouvia pessoas daquela idade chamando suas matriarcas com aquela palavra, geralmente era usada no diminutivo, mas achou bonitinho, um pouco interiorano.

Não sabia ao certo como aquilo tinha acontecido, mas lá estavam Valentina, o rapaz e a mãe dele no cinema. Eles correram para a casa dele depois do telefonema, pois sua mãe tinha dado a entender que estava passando muito mal e estava precisando de socorro, porém logo que chegaram a mulher, toda produzida, já foi entrando no carro dizendo que estava melhor, mas que seria mais sensato se fosse junto com eles só para garantir que não acontecesse algo de errado novamente. E foi assim que seu encontro acabou contando com uma pessoa não programada. O filme acabou, eles foram comer alguma coisa e depois os dois deixaram Valentina em sua casa. Ela abriu a porta de entrada e suspirou. Admitia que a noite não tinha sido de todo ruim, não fora nada como ela havia imaginado, porém tanto o rapaz quanto sua mãe a trataram com muito respeito à todo o momento, então não era como se tivesse realmente algo do que pudesse reclamar. Era até bonito de ver como ele cuidava bem de sua mãe, mas toda essa demonstração de carinho tinha que acontecer tão cedo? Afinal era somente seu segundo encontro com o sujeito. Bem, não crucificaria o cara ainda só por ter cuidado de sua mãe, não era isso que todo mundo queria no fundo? Alguém que se importasse com os outros? De família? Decidiu ver como as coisas rolariam.

Eles continuaram conversando e se encontrando, o rapaz cada vez mais empolgado com Valentina. Seria perfeito se a mãe não desse um jeito de aparecer em todas as ocasiões. A mulher tinha até mesmo adicionado Valentina ao Facebook e já conversava mais com ela do que o próprio filho. Era parque, cinema, restaurante, teatro. Em todos os lugares o trio sempre estava junto, alguns deles, inclusive, eram escolhidos pela própria mulher. No começo Valentina relevou a situação, tinha ficado com pena da mãe do rapaz, pois ele a contara que não fazia muito tempo tinha perdido o pai e desde então sua mãe nunca mais saíra para lugar algum, completou o discurso dizendo que era muito importante para ele ver que sua mãe tinha visto uma amiga em Valentina, foi por isso que tinha se segurado até então, porém não aguentava mais a presença da mulher em todos os lugares que ia com o rapaz. Queria estar só com ele! Mas não achava certo rejeitar a pobre senhora, afinal ela nunca havia lhe tratado mal, quem tinha que contornar aquela situação era o filho dela, mas o rapaz parecia gostar cada vez mais daquilo tudo. Em uma certa tarde, enquanto o trio passeava em um parque, Valentina decidiu que levaria a situação para o tudo ou nada, afinal ela nem estava namorando com o rapaz e já estava carregando a sogra para baixo e para cima, como ficariam as coisas se acaso a relação deles evoluísse? Aproveitou que a mulher estava mais afastada olhando os patos no lago e fez sua proposta.

– Estava pensando, e se na semana que vem a gente estendesse nosso encontro e sei lá, fossemos a um motel? – Seu rosto enrubesceu por ter feito o convite tão diretamente, mas era a única situação onde se imaginava livre da presença da mãe do rapaz. Ele olhou para ela por um tempo e pareceu se empolgar.

– Que ótima ideia! Mamãe adora uma hidromassagem. – Ele se levantou da grama em que estava sentado, deu um beijo em sua testa e até a mulher que estava perto do lago contar a novidade.

No dia seguinte Valentina mandou uma mensagem à mãe do rapaz. “O problema não é você, sou eu…”. Terminou tudo naquele instante, afinal sua relação era com a mulher e não com o filho. Valentina apagou ambos de suas redes sociais e voltou aos aplicativos de relacionamento.

Louis – 3 anos antes

– Alguém tem mais alguma pergunta? – Louis disse virando-se para a plateia de alunos que o assistia. Ainda estava atordoado com o telefonema que recebera cedo naquele dia, jamais teria imaginado que lhe fariam uma proposta daquelas em qualquer momento que fosse de sua vida, ainda mais agora. Uma garota magra, de cabelo curto e bagunçado, vestida em uma camiseta do Deep Purple levantou a mão. Ele apontou para ela sinalizando para que prosseguisse e tentou esvaziar sua mente se concentrando na dúvida de sua aluna.

Louis se surpreendeu ao ver que o horário do término da aula já tinha acabado, o assunto questionado acabou levando mais tempo do que ele havia esperado, o que era ótimo, afinal aquilo o havia feito esquecer de qualquer outra coisa que estivesse em sua cabeça. Enquanto ele arrumava o material dentro de sua maleta, os alunos iam se levantando e já se amontoavam na porta da sala para deixar o recinto.

– Ah… não esqueçam que semana que vem é o prazo final para a entrega do trabalho, ele vale a nota do semestre!

Alguns presentes sinalizaram concordando com a cabeça, mas a grande maioria já tinha ido embora. Alguns poucos ainda estavam aglomerados na saída, porém nenhum deles deu um sinal qualquer de que o tinham escutado. Algo do lado de fora atraia suas atenções e rendia muitos olhares e cochichos. Louis terminou de colocar seus livros dentro da maleta, pendurou esta em seu ombro e encaminhou-se até a porta. Do lado de fora, uma mulher de cabelos longos ondulados e pretos com olhos azuis estava recostada com um de seus ombros na parede, mexendo em seu celular, completamente alheia aos olhares dos jovens que passavam por ela. Destoava de todo o cenário ao seu redor, não era à toa que estava chamando tanta atenção. Parecia que tinha saído de uma capa de revista de moda. O professor chamou a atenção de seus alunos até que todos deixassem o local, depois voltou sua atenção para a mulher.

– Adeline? O que faz aqui? – A moça levantou o olhar do celular pela primeira vez até então, sua boca se abrindo em um leve sorriso.

– Finalmente! Achei que essa aula não teria fim. – Louis balançou um pouco a cabeça em negativa soltando um leve suspiro. Tanto tempo sem se verem e era isso que ela tinha para falar a ele? Adeline o agarrou pelo braço e o puxou corredor adentro, abrindo caminho por entre os alunos em direção à praça de alimentação. – Precisamos conversar.

O francês olhava fixamente para a moça sentada a sua frente, simplesmente não sabia como reagir ao que ela estava dizendo. Já fazia muito tempo que não a via, eram muito próximos na infância, mas eles tomaram caminhos diferentes na vida e isso acabou os afastando pouco a pouco. Nunca imaginou que Adeline pudesse vir até sua universidade só para encontrá-lo, então foi uma surpresa quando a viu parada a sua porta, sabia que algo sério estava acontecendo. Ainda não tinha decidido se ficava mais surpreso com a visita ou com o fato de ela ter recebido a mesma proposta que ele. Não, definitivamente o mais estranho em tudo aquilo era Adeline estar realmente considerando a possibilidade de fazer parte daquele projeto. Sempre passara longe do perfil aventureira e a ideia de uma pessoa como ela estar envolvida em algo como aquilo era surreal para ele. Deu de ombros. Não estava em posição de julgar ninguém, afinal ele mesmo não se considerava apto para tal situação. Adeline levantou-se, recostando a cadeira e levando consigo a lata do suco que tomava.

– Eu sei que você tem uma mulher e filhos, mas pense bem Louis, é uma oportunidade única de autopromoção. – Adeline piscou para ele.

– E para que eu iria querer isso, Adeline? Minha vida é muito diferente da sua e eu estou feliz com o jeito que ela é agora. Admito que o convite seja tentador, mas como você bem lembrou eu tenho uma família, não posso me dar ao luxo. – Ela olhou para ele com seriedade, seu olhar quase suplicante. Louis sentiu uma pontada de culpa, mas logo tentou afastá-la. – Você não precisa de mim para isso, Adeline, alias não precisa de ninguém para nada – ele disse com todo o carinho que tinha por ela. – Se isso é importante para você, vá, te dou total apoio! Eu mesmo já teria aceitado se as circunstâncias fossem outras.

– Não consigo sozinha – ela disse baixo. Louis a olhou com desconfiança, tinha certeza que tinha escutado errado, aquela não era a Adeline que conhecia. – Não tenho estômago para fazer algo desse porte sozinha, Louis. Preciso de você! – Ela continuava de cabeça baixa, sem encará-lo. Parecia ser uma tortura admitir sua vulnerabilidade. Ele não sabia o que dizer. Adeline respirou fundo e jogou os cabelos para trás, quando olhou para ele estava com um sorriso no rosto como se nada tivesse acontecido. – É uma grande oportunidade. E outra, conheço esse povo, trabalho com eles há anos! Vivem no mundo da lua. Esse projeto não irá para frente, acabará sendo somente umas férias nos Estados Unidos. Não me diga que não está precisando de uma? – Ela piscou novamente para o francês. Ele continuou a olhá-la, sem responder. Ela pegou sua bolsa e colocou a lata de volta em cima da mesa. – Pense com carinho e me ligue quando resolver – disse deixando Louis sozinho no restaurante.

Louis passou o jantar inteiro calado, pensando em tudo que acontecera naquele dia. Levou as crianças para o quarto e as colou para dormir, contando uma historinha de ninar. Cobriu cada um deles, beijou suas testas e, dando uma última olhada, apagou a luz deixando o quarto. Sua mulher estava sentada no sofá assistindo televisão, Louis sentou ao seu lado a abraçando.

– Ainda está com aquele telefonema na cabeça? – ela perguntou se aconchegando em seu peito.

– Adeline foi me procurar na universidade hoje. Ela também foi convidada a fazer parte do projeto e insistiu muito para que eu a acompanhasse. – A mulher levantou de leve a cabeça para encará-lo, uma sobrancelha levantada.

– Por essa eu não esperava! – ela confessou, depois ficou um tempo observando o semblante do marido. – Sei como tudo isso mexeu com você, querido. Talvez a aparição de Adeline seja o impulso que faltava para você aceitar o convite. A universidade tem um acordo com os organizadores do projeto, não é mesmo? – Louis acenou com a cabeça afirmando. – Está vendo? Parece que tudo quer que você diga sim.

– Eu não posso deixar você e as crianças por tanto tempo! E além de tudo é algo muito perigoso – ele falou com a voz carregada de dúvidas, estava muito dividido sobre o que faria. A mulher se levantou e pegou seu rosto entre as mãos.

– Qualquer coisa é perigosa Louis, você pode sair amanhã para trabalhar e não voltar mais! Estou vendo o quanto você quer isso e eu te amo por sempre pensar em sua família, mas não se prenda por nossa causa. Eu sentirei muito sua falta e as crianças também, mas estaremos exatamente aqui quando voltar, te esperando. Então siga seu coração e nos deixe orgulhosos! – ela disse com um dos braços levantados com se estivesse torcendo por ele. Louis puxou-a para si e lhe deu um longo e apaixonado beijo. Quando se soltaram ele se levantou sobressaltado, a adrenalina corria por suas veias.

– Tenho que ligar para Adeline.

Visita 127

A tela piscava na minha frente, estava tão cansado que nem sabia ao certo se era ela ou meus olhos que estavam pescando ocasionalmente. Balancei um pouco a cabeça e tomei mais um gole da xícara de café ao meu lado em cima da mesa. Eu tinha que terminar aquele plano, o carnaval já estava logo ai e eu nada tinha feito para me preparar para o que viria. Era verdade que da última vez todo meu planejamento fora em vão, afinal eu tinha conseguido um milagre de Natal, no último minuto do segundo tempo, depois de já ter memorizado todo o plano 126, a velha ligou avisando que não poderia vir porque um tal de tio Manoel resolvera partir desta para melhor. Nunca conhecera esse parente da minha esposa, mas eu tinha certeza que só com aquele último ato de benevolência o cara já tinha o seu lugar garantido no céu. Santo tio Manoel! Que sua alma iluminada descanse em paz. Tomei mais um gole do café e continuei, seria muita sorte para uma pessoa só ter outra morte na família assim tão rapidamente.

Ela entrou no apartamento já reclamando do motorista particular que tinha solicitado para trazê-la da estação até nossa casa, disse que o homem cheirava mal e não sabia se colocar em seu devido lugar, quase sugeri que fossemos correndo a um hospital fazer um teste de DNA porque, devido as semelhanças, as chances daquele sujeito ter algum parentesco com ela eram muito grandes. Tinha algo que não se encaixava naquela visita, apesar de todos os insultos e comentários sarcásticos de costume ela parecia levemente mais dócil. Até mesmo tinha me deixado dormir em minha própria cama! Bati a cabeça para saber o que tinha de errado, eram anos de convivência e o ser nunca tinha mudado uma vírgula de sua personalidade encantadora, o que tinha de diferente agora? No jantar daquela noite ela soltou a bomba que eu estava aguardando. Um namorado? A velha tinha conseguido arranjar um namorado? Eu sempre achei que toda panela tinha sua tampa, até conhecer minha sogra, ao primeiro contato com ela eu percebi que realmente haviam frigideiras espalhadas por esse mundão a fora das quais nem tampas possuíam, ela ter conseguido alguém naquela altura da vida realmente ia contra todas as leis da natureza. Não poderia dizer que era um santo, pois se fosse teria segurado a jararaca em sua terra natal durante o feriado, mas o coitado estava quase lá. É claro que ninguém superaria o Santo tio Manoel, este agora estava recebendo as graças eternas de um trabalho bem feito, mas o tal sujeito estava se esforçando. Ela passou os dias trancada no apartamento como uma adolescente pendurada ao telefone e, até mesmo fazia vídeo chamadas no computador ocasionalmente. Para mim, não ter o seu foco voltado a fazer da minha vida um inferno era uma grande vantagem, mesmo que sua presença constante profanasse meu recinto sagrado, mas eu sabia que seria muita sorte ser agraciado com dois milagres seguidos, então já estava esperando pela pegadinha quando ela fez seu escândalo em uma madrugada. Lúcia e eu acordamos com seus gritos desesperados, a velha desembestou a falar que nunca tinha sido tão humilhada em sua vida e que estava tudo acabado entre eles, que sua vontade era de se jogar daquela sacada, eu teria permanecido na cama se soubesse previamente do seu plano brilhante, apesar de que acabaríamos sendo multados pelo condomínio por jogar lixo em área comum se ela realmente seguisse com isso. Essa tinha sido rápida! Eu já tinha considerado a possibilidade do cara ser um interno do hospício existente em sua cidade, mas ele me parecia ser muito lúcido agora. Lúcia levou sua mãe para o quarto alegando que com uma boa noite de sono tudo se resolveria e eu fiquei olhando as duas partirem incrédulo. Inacreditável! A megera mal tinha terminado e já tinha me expulsado do meu próprio quarto.

No dia seguinte ela acordou com a corda toda, dizendo que iria aproveitar o feriado dos solteiros. Eu achei aquilo um disparate, mas ela conseguiu nos arrastar para todos os blocos de carnaval da cidade, não sabia o que ela queria de fato com isso até eu ver uma cena que me deu vontade de arrancar os olhos fora. Ela realmente estava dando em cima daquele rapaz? O moço tinha idade para ser seu neto! Eu precisava agir. Chamei um menino que carregava consigo um daqueles sprays de espuma e paguei cinco reais para que ele jogasse o jato na direção do casal. Deu certo! Assim que minha sogra foi atingida ela começou a xingar todos a sua volta e o rapaz aproveitou a oportunidade para sair de perto dela. Isso! Corra e salve-se das garras do cruel inimigo meu jovem.

Acordei com o pensamento de que iria surtar se tivesse que escutar mais uma única marchinha naquele dia, mas ao adentrar a sala vi minha sogra na porta com suas malas feitas ao lado.

– O que está acontecendo? – perguntei, acho que ainda estava sonhando.

– Eu estou voltando para casa. – Olhei incrédulo para ela, um leve sorriso querendo se formar em meus lábios.

– Tão cedo? O que aconteceu?

– Eu e meu namorado reatamos, não aguento mais ficar longe dele. – Ela me fitou por um tempo. – Não finja que está triste Leandro, sei muito bem que você não via a hora de se ver livre de mim. Tudo bem! É o fardo que tenho que carregar por sempre dizer a verdade aos outros, já estou acostumada. – Eu não tinha forças nem para responder a sua provocação, tamanha era minha felicidade. Seu celular bipou. – É o meu táxi. Dá para deixar de ser imprestável e me ajudar com as malas? Se já não bastasse não poder me dar uma carona para a rodoviária de tão tarde que acorda todo dia, ainda vai ficar parado ai que nem uma porta?

Ajudei a descer suas coisas e no caminho fiquei pensando que o danado do namorado realmente tinha conseguido reservar seu lugar no céu junto ao Santo tio Manoel.

Adeline – 3 anos antes

Ela corria apressada para conseguir chegar a tempo ao evento que estava marcado para o final daquela tarde. O salto agulha não ajudava no processo, mas também, quem é que poderia imaginar que ela iria ter que resolver tanto problema justo naquele dia? Teria uma conversa séria com a sua assistente, se ela não tomasse jeito depressa, teria que se desfazer dela. Adeline bufou. Só naquele ano já tinham passado quatro assistentes pelas suas mãos e nenhuma conseguiu manter o emprego, pelo jeito a quinta também já estava na corda bamba. Praguejou em silêncio quando uma senhora com um cachorro na coleira atrapalhou seu caminho. Não entendia o porquê das pessoas terem que passear com seus animais justamente ali e naquele horário. Os parques serviam para quê mesmo? Pelo amor de Deus! Esperou batendo o pé impaciente no chão enquanto o farol de pedestres continuava vermelho. Hoje era um daqueles dias que não deveria ter levantado da cama! Olhou para cima e soltou um sorriso, seu humor instantaneamente melhorado, estava encarando sua própria foto no outdoor do alto do prédio da esquina. Aquela peça tinha sido liberada há pouco tempo e ela ainda não havia visto o resultado. Ficou impressionada, não achou que ficaria tão bom!

Era Adeline quem organizava todos aqueles eventos para o Instituto de Pesquisas Espaciais e era ótima no que fazia, mesmo que, no fundo, ela mesma achasse todos eles muito maçantes. A instituição estava investindo muito nos últimos anos em publicidade visando angariar mais notoriedade para o meio e com isso melhores investidores, foi quando contrataram Adeline que da noite para o dia virou a voz e o rosto daquele lugar, tudo devido a sua aparência e ao seu trabalho excepcional como relações públicas. Ela não entendia nada sobre o que faziam e nem se importava com isso, com tanto que continuassem a manter seu salário gordo e suas regalias continuaria trabalhando satisfeita.

– Adeline, isso está ótimo! Você realmente sabe como dar uma festa – disse uma mulher com cabelos loiros compridos e muito escorridos enquanto se aproximava. Sophie era a única pessoa naquele lugar que Adeline considerava sua colega. Aproximou-se com elegância da loira e sussurrou discretamente em seu ouvido.

– Se você está animada com isso, se prepara para a festa de verdade mais tarde! – Adeline piscou para Sophie e se afastou, abrindo um sorriso largo quando cumprimentou o trio de americanos que estava junto com o seu gerente, ela tinha que deixar sua marca, afinal os estrangeiros era o motivo para todo aquele evento.

Sua cabeça latejava. Escutou um ronco baixo, olhou para o lado e viu um homem dormindo ao seu lado com a maior parte do seu corpo a mostra, somente uma parte pequena coberta pelo lençol claro e fino. Tentou se lembrar do que tinha acontecido na noite anterior, mas suas memórias eram falhas. Sabia que tinha saído do evento com Sophie e que as duas tinham ido direto para uma balada vip, onde Adeline como sempre, havia conseguido colocá-las para dentro, depois disso não se lembrava de mais nada. Vestiu-se silenciosamente, pegou os sapatos nas mãos e andou de fininho até a porta. Antes de sair olhou mais uma vez para o estranho. Não era a primeira vez que acordava em companhia alheia e não seria a última, mas neste momento não sentia vontade de manter contato com aquele rapaz, então simplesmente abriu a porta e saiu, sem deixar nenhum sinal de sua existência no local.

– Adeline, o Jean pediu para que você fosse à sala dele assim que chegasse. – Ela olhou emburrada para a sua assistente, não estava com humor para o seu gerente logo cedo, ainda mais naquelas condições.

– Avise-o que estarei lá em alguns minutos. – Sua assistente já saia da sala quando Adeline a chamou novemente. – Ah, Marie, depois teremos que conversar sobre o que aconteceu ontem – ela disse incisiva, sua assistente engoliu em seco antes de se retirar.

Adeline ainda olhava incrédula para Jean, como ele poderia estar propondo aquilo para ela? Tinha um limite de onde chegaria por aquele emprego e ele tinha ultrapassado todos. Ir para um fim de mundo qualquer dos Estados Unidos e ficar isolada por não sei quanto tempo com um monte de gente estranha como aquele pessoal do instituto? Era um disparate! Isso porque ela nem estava contando com a outra parte do plano, porque simplesmente julgou ser só uma fantasia daquele pessoal.

– Vamos Adeline, por favor! Tem que ser você – Jean insistia e a francesa continuava balançando a cabeça negativamente. – Pense em quanta fama não irá ganhar com isso, como única representante de nosso país.

Adeline parou de balançar a cabeça e olhou para seu gerente, seus olhos brilhando ligeiramente, Jean tinha acertado em cheio quando usou a palavra “fama” em seu argumento.

– Única representante? – De repente aquela ideia não parecia tão maluca assim, não podia negar que naquelas condições tudo aquilo seria ótimo para seu marketing pessoal. Jean sorriu sem jeito.

– Tudo bem, não será a única… – O sorriso de Adeline se desfez e Jean rapidamente tentou contornar a situação. – Mas aquele professorzinho não vai ser nada perto do seu brilho Adeline, acredite em mim.

– Professor?

– Sim, um tal de Louis Blanc, parece que ele dá aulas na Universidade de Paris. – Adeline arregalou os olhos surpresa, seu chefe achando que aquilo era mais uma negativa se adiantou. – Está vendo? Não tem com o que se preocupar, ele será invisível ao seu lado e…

– Eu vou – Adeline disse cortando Jean no meio da frase e já se levantando para sair do aposento, dando como encerrada a conversa. O homem a olhou estupefato.

– Vai? – ele disse em dúvida, achou que a tinha perdido novamente quando mencionou que faria parceria com um professor universitário qualquer.

– Sim – respondeu com convicção e Jean soltou um suspiro aliviado. – Mas antes tenho que conversar com Louis sobre o assunto – ela continuou indiferente e depois deixou a sala sem esperar por uma resposta.

Ela e Ele – O encontro

Ela estava na frente do espelho escolhendo que roupa iria colocar. Nunca tinha tido um encontro como aquele, em duas etapas, mas estava animada com as expectativas. Para essa primeira fase tinha sido alertada a usar algo confortável, então seguiu as recomendações à risca. Colocou um shorts boyfriend jeans com uma blusinha clara e uma sandália rasteira. Fez uma maquiagem básica e separou algumas coisas para levar na bolsa à tira colo. Não sabia para onde ia, era uma surpresa, mas sabia que fariam um tour pela cidade de São Paulo.

Ele resolveu deixar o carro na garagem, seria um encontro à moda antiga. Estava ansioso, nunca tinha feito aquilo antes, mas já tinha revisado todo o roteiro diversas vezes e a cada vez que relia se sentia mais seguro com aquilo. Chegou à estação de metrô combinada às nove horas da manhã. Ela estava parada perto da escada rolante batendo um dos pés no chão, um pouco insegura, e tão linda! Ele a cumprimentou e os dois subiram para a Avenida Paulista, caminharam um pouco até uma padaria tradicional da região, lá iriam fazer os seus desjejuns. Após a primeira refeição do dia ele guiou ela à pé até o parque Ibirapuera, enquanto lhe contava coisas sobre a vida e algumas curiosidades que sabia a respeito do local.

Ela estava encantada que ele tinha planejado até o café da manhã dos dois e ficou ainda mais contente quando viu que estavam indo ao parque, com certeza tinham começado aquele encontro com o pé direito. Caminharam, andaram de bicicleta, sentaram na grama comendo a pipoca doce que ele havia comprado. Quando o sol já alcançava o seu pico ele levantou-se anunciando que precisavam continuar seguindo o roteiro, pois ainda havia muito mais programado. Foram para o metrô mais próximo e seguiram para o centro antigo da cidade.

Ele estava animado para chegar ao próximo ponto do seu itinerário. Havia explicado a ela que fariam um tour pela cidade como se fossem turistas que a viam pela primeira vez, então que lugar melhor para se almoçar do que o famoso cruzamento eternizado na voz de Caetano da Av. Ipiranga com a Av. São João? Com certeza alguma coisa já acontecia no seu coração! Tiveram um almoço bem brasileiro em um bar muito conhecido da região, aproveitaram para tomar alguns chopps enquanto conversavam um pouco mais para se conhecerem.

Ela não conseguia acreditar que dava para conhecer tanto da cidade em um único dia, assim que saíram do bar, passaram pelo Viaduto do Chá para pegar o próximo metrô com destino a parada seguinte. Já era fim de tarde, mas ainda estava claro, quando ele a surpreendeu descendo na Vila Madalena, o que ele queria? Deixá-la bêbada? Mas é claro que suas intenções estavam longe disso. Percebeu assim que chegaram ao Beco do Batman e ele sacou o celular do bolso para que começassem a tirar fotos e mais fotos naquelas paredes todas grafitadas. Tão urbanas e tão lindas! Aquilo só ficava cada vez melhor.

Ele achava que seus planos tinham saído como esperado, pelo menos ele se sentia muito feliz e mal via a hora de encontrá-la novamente para a segunda parte do seu tour. Combinaram de ir para casa, tomar um banho e se arrumar para a próxima etapa. Desta vez tinha que ir mais arrumado, então colocou uma calça de sarja com um sapatênis e uma camisa. O carro sairia da garagem, buscaria a dama em sua casa como um perfeito cavalheiro. Já tinha confirmado as reservas e estava pronto, só contando os minutos para encontrá-la novamente.

Ela não tinha palavras para explicar o que sentia, o dia já tinha sido maravilhoso e agora ele havia programado o jantar em um restaurante tradicional que tinha uma vista panorâmica para a cidade toda. Enquanto esperava a comida ser servida ficou admirando as luzes da cidade e imaginando que não poderia ter mudado nada naquele dia, simplesmente estava perfeito. Em um clima mais romântico, conversaram mais durante todo o jantar.

Eles se beijaram ao final do encontro como era de se esperar, seus corações palpitando no mesmo compasso com o toque um do outro. Não sabemos onde isso irá parar, na verdade nem eles sabem! Mas a cidade abriu uma porta para eles que dificilmente será fechada novamente. E o resto? A gente descobre depois.

Sakura – 3 anos antes

Final de Abril em uma tarde gostosa de primavera, todos os preparativos já estavam sendo arrumados desde cedo. Pessoas corriam de um lado ao outro levando roupas, acessórios e verificando os últimos detalhes da decoração. Sakura estava sentada em frente ao espelho em uma sala reservada do templo, esperando a outra mulher terminar de pintar seu rosto de branco.

– Terminei. Você está linda, Sakura! – anunciou a senhora com um sorriso no rosto, já guardando o material da pintura.

A pequena japonesa abriu os olhos devagar e encarou seu reflexo no espelho, teve vontade de chorar, mas segurou as lágrimas para que não estragasse a maquiagem recém aplicada. Seu cabelo enrolado em um penteado trabalhoso cheio de flores, pérolas e pendentes de ouro reluzia com os raios de sol que entrava pela janela. Ela se levantou e ajeitou seu quimono de seda branco, dando uma última olhada em si mesma. Estava pronta! Em poucos minutos ela entraria por uma entrada daquele templo e Kazuki, seu futuro marido, pela outra e os dois fariam seus votos de laços eternos na frente de toda sua família e amigos.

A cerimônia aconteceu exatamente como prevista. No altar dependuravam-se os dois rosários budistas simbolizando as duas famílias que ali se uniriam. O cheiro de incenso tomando conta do ambiente, contrastando perfeitamente com o odor que vinha das flores que enfeitavam o portal vermelho e os bancos de madeira. O religioso começou celebrando o ritual de purificação dos noivos e convidados para logo em seguida começar a cerimônia de casamento. Quando Sakura chegou, Kazuki já a esperava no altar em seu quimono de seda preto, seus olhos brilhavam como nunca e ela sentiu vontade de chorar pela segunda vez naquele dia, respirou fundo e segurou as lágrimas mais uma vez. Após as palavras do religioso os dois se olharam nos olhos e disseram seus votos de amor e fidelidade enquanto suas famílias, seguindo a tradição, se encaravam, de frente uma para a outra, sem olhar para o casal que fazia suas juras. Os noivos trocaram suas alianças e se dirigiram ao santuário para fazer suas oferendas aos Deuses. Galhos da árvore sagrada foram sacudidos sobre suas cabeças, para finalmente o casal se sentar em frente à mesa e concluir a celebração com o ritual do saquê. Pela primeira vez naquele dia Sakura se sentiu insegura. Tudo era muito simples, os dois deveriam olhar nos olhos um do outro e apreciar um gole da bebida, logo em seguida depositariam os copos na mesa ao mesmo tempo, simbolizando que o casal teria uma vida longa juntos. Kazuki acabou colocando seu copo em cima da mesa alguns segundos antes que ela pudesse fazer o mesmo e um frio percorreu por toda sua espinha. Pela tradição, aquilo significava que ele iria morrer antes dela. Sacudiu um pouco a cabeça e respirou fundo mais uma vez. Tudo tinha sido perfeito até aquele momento e aquilo era somente um ritual bobo, não tinha sentido ser levado tão a sério.

O salão estava lindamente decorado com flores vermelhas e brancas em todos os lugares que se olhava. Antes que a comida fosse servida, sua família e a de seu marido se apresentaram aos convidados, bem como os próprios noivos. Sakura tinha trocado seu quimono por um vestido de casamento tradicional ocidental que tinha visto em uma revista e mandara fazer igual. Kazuki também usava um terno comum agora. Tudo na recepção estava perfeito: as comidas e bebidas, as músicas, as danças, o karaokê, os discursos emocionantes dos amigos e familiares. Sakura não poderia ter pensado em uma festa melhor, mesmo que quisesse. Quando os convidados começaram a entregar os envelopes com os presentes a pequena japonesa não conseguiu mais conter as lágrimas e chorou. Já tinha esperado tempo suficiente contendo suas emoções, era seu dia, seu momento, tinha o direito de colocar para fora toda a felicidade que sentira até ali. Ao final Sakura e Kazuki se levantaram e de mãos dadas agradeceram a presença de todos os seus convidados. Sob uma chuva de aplausos os noivos entregaram um buque de flores para cada uma de suas mães e um cravo vermelho aos seus pais.

Sakura passava os dedos nos cabelos para desfazer os nós feitos pelo penteado elaborado que usou na cerimônia. Ainda não acreditava que estava ali, naquela suíte, casada com Kazuki em sua noite de núpcias. Foi até o quarto e viu seu marido debruçado na varanda encarando a cidade com uma expressão pensativa.

– Algum problema? – ela disse parando ao seu lado. Ele a olhou por um instante para logo em seguida dar um beijo em sua testa com carinho.

– Nenhum. Eu só gostaria que tivéssemos tido tempo de ter uma lua de mel de verdade. – Ele suspirou soltando um leve sorriso. Ela o olhou por um momento. Sabia que, de fato, eles não teriam uma lua de mel. Não tinha se preocupado com isso até então, mas agora, olhando para ele, também queria ter mais tempo a sós com o seu marido. Mas isso não iria acontecer! Seus desempenhos excepcionais, em um projeto que tinham trabalhado em conjunto, os levou a serem convidados para um experimento único e, em menos de uma semana, os dois estariam embarcando para os Estados Unidos, arruinando assim todos os planos de uma viagem elaborada para celebrar seu casamento. Sakura se aproximou de Kazuki e deu um beijo demorado em seu marido.

– Não tem importância Kazuki! – Ela olhou o parceiro com ternura, acariciando seu rosto com a parte de trás da mão. – Vamos fazer desse experimento a nossa lua de mel. Aposto que nunca, ninguém, terá uma igual! – Ele soltou um sorriso, beijando sua mão e a puxando para dentro do quarto novamente.

A terra de Babel

Alguns dizem que é só seguir por um caminho tortuoso que começa ali e vai para lugar algum, já outros, que precisamos seguir o curso do rio até as entranhas da floresta longínqua, mas a verdade é que não importa qual seja o caminho que se tome, a única coisa em comum é o fato de ser quase impossível de se chegar. Entre montanhas quase tão altas que tocam o céu e florestas inexploradas dos confins do mundo se encontra uma pequena cidade onde a tecnologia ainda não chegou e a paisagem o homem quase não mudou. Tal isolamento já a torna uma joia rara nos dias de hoje, porém, se não bastasse, ela ainda conta com outro fato quase tão peculiar quanto seu surgimento: cada um de seus habitantes fala uma língua diferente. Como isso é possível? Ninguém sabe. Mas é certo que, mesmo sendo no máximo algumas pessoas de uma mesma família que conseguem se comunicar em um mesmo dialeto, o comércio, as transações e o convívio fluem como se todas se entendessem muito bem e de fato, de algum jeito, se entendem.

Certo dia um forasteiro apareceu. Ele ficou maravilhado com aquele pequeno vilarejo e com as pessoas que o habitavam e logo percebeu que não havia uma língua em comum, que cada um tinha seu jeito próprio de se comunicar. Achou tudo aquilo muito estranho, mas viu uma oportunidade no ar, de onde ele vinha não era ninguém, mas ali, naquele lugar, poderia ser rei se fizesse com que aquelas pessoas perceberem que havia um jeito de todas falarem a mesma língua. Então colocou seu plano em ação: elegeu o idioma que mais lhe agradava, montou uma escola e espalhou a novidade. Em pouco tempo cada vez mais curiosos e inocentes atendiam as suas aulas, querendo conferir o mais novo empreendimento do vilarejo e se encantando com a nova forma de se pronunciar.

Meses se passaram e o forasteiro não poderia estar mais contente, seu plano ia de vento em polpa, quase todos da cidade já falavam a língua que ele havia escolhido e ele era tratado como uma celebridade entre as pessoas. O lugar já mostrava alguns sinais de mudança: novos comércios e oportunidades. Era certo que o vilarejo se expandiria e se continuasse assim, seria reconhecido no mundo moderno e o forasteiro seria o bem feitor que fez com que tudo aquilo acontecesse. Porém coisas estranhas começaram a acontecer junto com a expansão da cidade. Brigas nas ruas, discussões entre vizinhos, pequenos furtos e roubos, que nunca antes foram vistos começaram a aparecer. As pessoas já não eram mais tão felizes, viviam com as caras emburradas e por muito pouco perdiam a paciência uns com os outros. O ódio e o preconceito, nunca antes pronunciados, agora haviam se instalado ali. Já não mais era a mesma cidade que o forasteiro tanto admirara assim que havia chegado a ela. Talvez fosse somente questão de adaptação, logo tudo se ajeitaria novamente, pelo menos assim ele esperava. Contudo, em uma noite de verão, o pior aconteceu. Não soube como começou e nem como proceder, só se lembra de ter acordado em sua casa com os gritos histéricos das pessoas nas ruas e logo correu para ver do que se tratava. Uma das casas havia pegado fogo. Alguns tentavam apagá-lo enquanto outros queriam entender o que tinha acontecido. Não demoraram a descobrir que o fogo havia sido proposital, o primeiro crime com vítimas fatais da história do vilarejo havia acontecido, duas pessoas haviam morrido por culpa da intolerância que agora existia. Desgostoso, o forasteiro decidiu ir embora da cidade na manhã seguinte e arrumou suas coisas. Não entendia o porquê daquilo estar acontecendo, pensou que o vilarejo era uma causa perdida no final das contas, por isso a tanto fora esquecido. A melhora na comunicação deveria ter trazido progresso e não desordem. Pegou sua mala e partiu, sem nunca mais olhar para trás.

A cidade nunca mais fora a mesma. Com o tempo, assim como o forasteiro havia previsto, ele ficou conhecida no mundo moderno, mas nunca teria nada de especial se comparada a qualquer outro lugar. Os habitantes nem se lembravam mais do porquê de terem vivido tão isolados por tanto tempo e o que os tornavam tão diferentes. O forasteiro acertou em todas suas previsões, porém não percebeu que o que a fazia o vilarejo tão especial e o que realmente havia lhe encantado era justamente a forma de comunicação única que ela possuía. Com certeza tinha suas limitações, mas foi assim que os habitantes do lugar aprenderam a respeitar as diferenças uns dos outros e a, principalmente, pensar antes de falar. Viviam uma vida simples e não tinham espaço para dizer mais do que deveriam. Agora que podiam se expressar da maneira que quisessem, não pensavam duas vezes antes de falar e foi exatamente neste ponto que acabaram esquecendo o valor das palavras. O forasteiro fez com que ganhassem o mundo, mas perdessem o que era essencial.