Adeline – 3 anos antes

Ela corria apressada para conseguir chegar a tempo ao evento que estava marcado para o final daquela tarde. O salto agulha não ajudava no processo, mas também, quem é que poderia imaginar que ela iria ter que resolver tanto problema justo naquele dia? Teria uma conversa séria com a sua assistente, se ela não tomasse jeito depressa, teria que se desfazer dela. Adeline bufou. Só naquele ano já tinham passado quatro assistentes pelas suas mãos e nenhuma conseguiu manter o emprego, pelo jeito a quinta também já estava na corda bamba. Praguejou em silêncio quando uma senhora com um cachorro na coleira atrapalhou seu caminho. Não entendia o porquê das pessoas terem que passear com seus animais justamente ali e naquele horário. Os parques serviam para quê mesmo? Pelo amor de Deus! Esperou batendo o pé impaciente no chão enquanto o farol de pedestres continuava vermelho. Hoje era um daqueles dias que não deveria ter levantado da cama! Olhou para cima e soltou um sorriso, seu humor instantaneamente melhorado, estava encarando sua própria foto no outdoor do alto do prédio da esquina. Aquela peça tinha sido liberada há pouco tempo e ela ainda não havia visto o resultado. Ficou impressionada, não achou que ficaria tão bom!

Era Adeline quem organizava todos aqueles eventos para o Instituto de Pesquisas Espaciais e era ótima no que fazia, mesmo que, no fundo, ela mesma achasse todos eles muito maçantes. A instituição estava investindo muito nos últimos anos em publicidade visando angariar mais notoriedade para o meio e com isso melhores investidores, foi quando contrataram Adeline que da noite para o dia virou a voz e o rosto daquele lugar, tudo devido a sua aparência e ao seu trabalho excepcional como relações públicas. Ela não entendia nada sobre o que faziam e nem se importava com isso, com tanto que continuassem a manter seu salário gordo e suas regalias continuaria trabalhando satisfeita.

– Adeline, isso está ótimo! Você realmente sabe como dar uma festa – disse uma mulher com cabelos loiros compridos e muito escorridos enquanto se aproximava. Sophie era a única pessoa naquele lugar que Adeline considerava sua colega. Aproximou-se com elegância da loira e sussurrou discretamente em seu ouvido.

– Se você está animada com isso, se prepara para a festa de verdade mais tarde! – Adeline piscou para Sophie e se afastou, abrindo um sorriso largo quando cumprimentou o trio de americanos que estava junto com o seu gerente, ela tinha que deixar sua marca, afinal os estrangeiros era o motivo para todo aquele evento.

Sua cabeça latejava. Escutou um ronco baixo, olhou para o lado e viu um homem dormindo ao seu lado com a maior parte do seu corpo a mostra, somente uma parte pequena coberta pelo lençol claro e fino. Tentou se lembrar do que tinha acontecido na noite anterior, mas suas memórias eram falhas. Sabia que tinha saído do evento com Sophie e que as duas tinham ido direto para uma balada vip, onde Adeline como sempre, havia conseguido colocá-las para dentro, depois disso não se lembrava de mais nada. Vestiu-se silenciosamente, pegou os sapatos nas mãos e andou de fininho até a porta. Antes de sair olhou mais uma vez para o estranho. Não era a primeira vez que acordava em companhia alheia e não seria a última, mas neste momento não sentia vontade de manter contato com aquele rapaz, então simplesmente abriu a porta e saiu, sem deixar nenhum sinal de sua existência no local.

– Adeline, o Jean pediu para que você fosse à sala dele assim que chegasse. – Ela olhou emburrada para a sua assistente, não estava com humor para o seu gerente logo cedo, ainda mais naquelas condições.

– Avise-o que estarei lá em alguns minutos. – Sua assistente já saia da sala quando Adeline a chamou novemente. – Ah, Marie, depois teremos que conversar sobre o que aconteceu ontem – ela disse incisiva, sua assistente engoliu em seco antes de se retirar.

Adeline ainda olhava incrédula para Jean, como ele poderia estar propondo aquilo para ela? Tinha um limite de onde chegaria por aquele emprego e ele tinha ultrapassado todos. Ir para um fim de mundo qualquer dos Estados Unidos e ficar isolada por não sei quanto tempo com um monte de gente estranha como aquele pessoal do instituto? Era um disparate! Isso porque ela nem estava contando com a outra parte do plano, porque simplesmente julgou ser só uma fantasia daquele pessoal.

– Vamos Adeline, por favor! Tem que ser você – Jean insistia e a francesa continuava balançando a cabeça negativamente. – Pense em quanta fama não irá ganhar com isso, como única representante de nosso país.

Adeline parou de balançar a cabeça e olhou para seu gerente, seus olhos brilhando ligeiramente, Jean tinha acertado em cheio quando usou a palavra “fama” em seu argumento.

– Única representante? – De repente aquela ideia não parecia tão maluca assim, não podia negar que naquelas condições tudo aquilo seria ótimo para seu marketing pessoal. Jean sorriu sem jeito.

– Tudo bem, não será a única… – O sorriso de Adeline se desfez e Jean rapidamente tentou contornar a situação. – Mas aquele professorzinho não vai ser nada perto do seu brilho Adeline, acredite em mim.

– Professor?

– Sim, um tal de Louis Blanc, parece que ele dá aulas na Universidade de Paris. – Adeline arregalou os olhos surpresa, seu chefe achando que aquilo era mais uma negativa se adiantou. – Está vendo? Não tem com o que se preocupar, ele será invisível ao seu lado e…

– Eu vou – Adeline disse cortando Jean no meio da frase e já se levantando para sair do aposento, dando como encerrada a conversa. O homem a olhou estupefato.

– Vai? – ele disse em dúvida, achou que a tinha perdido novamente quando mencionou que faria parceria com um professor universitário qualquer.

– Sim – respondeu com convicção e Jean soltou um suspiro aliviado. – Mas antes tenho que conversar com Louis sobre o assunto – ela continuou indiferente e depois deixou a sala sem esperar por uma resposta.

Ela e Ele – O encontro

Ela estava na frente do espelho escolhendo que roupa iria colocar. Nunca tinha tido um encontro como aquele, em duas etapas, mas estava animada com as expectativas. Para essa primeira fase tinha sido alertada a usar algo confortável, então seguiu as recomendações à risca. Colocou um shorts boyfriend jeans com uma blusinha clara e uma sandália rasteira. Fez uma maquiagem básica e separou algumas coisas para levar na bolsa à tira colo. Não sabia para onde ia, era uma surpresa, mas sabia que fariam um tour pela cidade de São Paulo.

Ele resolveu deixar o carro na garagem, seria um encontro à moda antiga. Estava ansioso, nunca tinha feito aquilo antes, mas já tinha revisado todo o roteiro diversas vezes e a cada vez que relia se sentia mais seguro com aquilo. Chegou à estação de metrô combinada às nove horas da manhã. Ela estava parada perto da escada rolante batendo um dos pés no chão, um pouco insegura, e tão linda! Ele a cumprimentou e os dois subiram para a Avenida Paulista, caminharam um pouco até uma padaria tradicional da região, lá iriam fazer os seus desjejuns. Após a primeira refeição do dia ele guiou ela à pé até o parque Ibirapuera, enquanto lhe contava coisas sobre a vida e algumas curiosidades que sabia a respeito do local.

Ela estava encantada que ele tinha planejado até o café da manhã dos dois e ficou ainda mais contente quando viu que estavam indo ao parque, com certeza tinham começado aquele encontro com o pé direito. Caminharam, andaram de bicicleta, sentaram na grama comendo a pipoca doce que ele havia comprado. Quando o sol já alcançava o seu pico ele levantou-se anunciando que precisavam continuar seguindo o roteiro, pois ainda havia muito mais programado. Foram para o metrô mais próximo e seguiram para o centro antigo da cidade.

Ele estava animado para chegar ao próximo ponto do seu itinerário. Havia explicado a ela que fariam um tour pela cidade como se fossem turistas que a viam pela primeira vez, então que lugar melhor para se almoçar do que o famoso cruzamento eternizado na voz de Caetano da Av. Ipiranga com a Av. São João? Com certeza alguma coisa já acontecia no seu coração! Tiveram um almoço bem brasileiro em um bar muito conhecido da região, aproveitaram para tomar alguns chopps enquanto conversavam um pouco mais para se conhecerem.

Ela não conseguia acreditar que dava para conhecer tanto da cidade em um único dia, assim que saíram do bar, passaram pelo Viaduto do Chá para pegar o próximo metrô com destino a parada seguinte. Já era fim de tarde, mas ainda estava claro, quando ele a surpreendeu descendo na Vila Madalena, o que ele queria? Deixá-la bêbada? Mas é claro que suas intenções estavam longe disso. Percebeu assim que chegaram ao Beco do Batman e ele sacou o celular do bolso para que começassem a tirar fotos e mais fotos naquelas paredes todas grafitadas. Tão urbanas e tão lindas! Aquilo só ficava cada vez melhor.

Ele achava que seus planos tinham saído como esperado, pelo menos ele se sentia muito feliz e mal via a hora de encontrá-la novamente para a segunda parte do seu tour. Combinaram de ir para casa, tomar um banho e se arrumar para a próxima etapa. Desta vez tinha que ir mais arrumado, então colocou uma calça de sarja com um sapatênis e uma camisa. O carro sairia da garagem, buscaria a dama em sua casa como um perfeito cavalheiro. Já tinha confirmado as reservas e estava pronto, só contando os minutos para encontrá-la novamente.

Ela não tinha palavras para explicar o que sentia, o dia já tinha sido maravilhoso e agora ele havia programado o jantar em um restaurante tradicional que tinha uma vista panorâmica para a cidade toda. Enquanto esperava a comida ser servida ficou admirando as luzes da cidade e imaginando que não poderia ter mudado nada naquele dia, simplesmente estava perfeito. Em um clima mais romântico, conversaram mais durante todo o jantar.

Eles se beijaram ao final do encontro como era de se esperar, seus corações palpitando no mesmo compasso com o toque um do outro. Não sabemos onde isso irá parar, na verdade nem eles sabem! Mas a cidade abriu uma porta para eles que dificilmente será fechada novamente. E o resto? A gente descobre depois.

Sakura – 3 anos antes

Final de Abril em uma tarde gostosa de primavera, todos os preparativos já estavam sendo arrumados desde cedo. Pessoas corriam de um lado ao outro levando roupas, acessórios e verificando os últimos detalhes da decoração. Sakura estava sentada em frente ao espelho em uma sala reservada do templo, esperando a outra mulher terminar de pintar seu rosto de branco.

– Terminei. Você está linda, Sakura! – anunciou a senhora com um sorriso no rosto, já guardando o material da pintura.

A pequena japonesa abriu os olhos devagar e encarou seu reflexo no espelho, teve vontade de chorar, mas segurou as lágrimas para que não estragasse a maquiagem recém aplicada. Seu cabelo enrolado em um penteado trabalhoso cheio de flores, pérolas e pendentes de ouro reluzia com os raios de sol que entrava pela janela. Ela se levantou e ajeitou seu quimono de seda branco, dando uma última olhada em si mesma. Estava pronta! Em poucos minutos ela entraria por uma entrada daquele templo e Kazuki, seu futuro marido, pela outra e os dois fariam seus votos de laços eternos na frente de toda sua família e amigos.

A cerimônia aconteceu exatamente como prevista. No altar dependuravam-se os dois rosários budistas simbolizando as duas famílias que ali se uniriam. O cheiro de incenso tomando conta do ambiente, contrastando perfeitamente com o odor que vinha das flores que enfeitavam o portal vermelho e os bancos de madeira. O religioso começou celebrando o ritual de purificação dos noivos e convidados para logo em seguida começar a cerimônia de casamento. Quando Sakura chegou, Kazuki já a esperava no altar em seu quimono de seda preto, seus olhos brilhavam como nunca e ela sentiu vontade de chorar pela segunda vez naquele dia, respirou fundo e segurou as lágrimas mais uma vez. Após as palavras do religioso os dois se olharam nos olhos e disseram seus votos de amor e fidelidade enquanto suas famílias, seguindo a tradição, se encaravam, de frente uma para a outra, sem olhar para o casal que fazia suas juras. Os noivos trocaram suas alianças e se dirigiram ao santuário para fazer suas oferendas aos Deuses. Galhos da árvore sagrada foram sacudidos sobre suas cabeças, para finalmente o casal se sentar em frente à mesa e concluir a celebração com o ritual do saquê. Pela primeira vez naquele dia Sakura se sentiu insegura. Tudo era muito simples, os dois deveriam olhar nos olhos um do outro e apreciar um gole da bebida, logo em seguida depositariam os copos na mesa ao mesmo tempo, simbolizando que o casal teria uma vida longa juntos. Kazuki acabou colocando seu copo em cima da mesa alguns segundos antes que ela pudesse fazer o mesmo e um frio percorreu por toda sua espinha. Pela tradição, aquilo significava que ele iria morrer antes dela. Sacudiu um pouco a cabeça e respirou fundo mais uma vez. Tudo tinha sido perfeito até aquele momento e aquilo era somente um ritual bobo, não tinha sentido ser levado tão a sério.

O salão estava lindamente decorado com flores vermelhas e brancas em todos os lugares que se olhava. Antes que a comida fosse servida, sua família e a de seu marido se apresentaram aos convidados, bem como os próprios noivos. Sakura tinha trocado seu quimono por um vestido de casamento tradicional ocidental que tinha visto em uma revista e mandara fazer igual. Kazuki também usava um terno comum agora. Tudo na recepção estava perfeito: as comidas e bebidas, as músicas, as danças, o karaokê, os discursos emocionantes dos amigos e familiares. Sakura não poderia ter pensado em uma festa melhor, mesmo que quisesse. Quando os convidados começaram a entregar os envelopes com os presentes a pequena japonesa não conseguiu mais conter as lágrimas e chorou. Já tinha esperado tempo suficiente contendo suas emoções, era seu dia, seu momento, tinha o direito de colocar para fora toda a felicidade que sentira até ali. Ao final Sakura e Kazuki se levantaram e de mãos dadas agradeceram a presença de todos os seus convidados. Sob uma chuva de aplausos os noivos entregaram um buque de flores para cada uma de suas mães e um cravo vermelho aos seus pais.

Sakura passava os dedos nos cabelos para desfazer os nós feitos pelo penteado elaborado que usou na cerimônia. Ainda não acreditava que estava ali, naquela suíte, casada com Kazuki em sua noite de núpcias. Foi até o quarto e viu seu marido debruçado na varanda encarando a cidade com uma expressão pensativa.

– Algum problema? – ela disse parando ao seu lado. Ele a olhou por um instante para logo em seguida dar um beijo em sua testa com carinho.

– Nenhum. Eu só gostaria que tivéssemos tido tempo de ter uma lua de mel de verdade. – Ele suspirou soltando um leve sorriso. Ela o olhou por um momento. Sabia que, de fato, eles não teriam uma lua de mel. Não tinha se preocupado com isso até então, mas agora, olhando para ele, também queria ter mais tempo a sós com o seu marido. Mas isso não iria acontecer! Seus desempenhos excepcionais, em um projeto que tinham trabalhado em conjunto, os levou a serem convidados para um experimento único e, em menos de uma semana, os dois estariam embarcando para os Estados Unidos, arruinando assim todos os planos de uma viagem elaborada para celebrar seu casamento. Sakura se aproximou de Kazuki e deu um beijo demorado em seu marido.

– Não tem importância Kazuki! – Ela olhou o parceiro com ternura, acariciando seu rosto com a parte de trás da mão. – Vamos fazer desse experimento a nossa lua de mel. Aposto que nunca, ninguém, terá uma igual! – Ele soltou um sorriso, beijando sua mão e a puxando para dentro do quarto novamente.

A terra de Babel

Alguns dizem que é só seguir por um caminho tortuoso que começa ali e vai para lugar algum, já outros, que precisamos seguir o curso do rio até as entranhas da floresta longínqua, mas a verdade é que não importa qual seja o caminho que se tome, a única coisa em comum é o fato de ser quase impossível de se chegar. Entre montanhas quase tão altas que tocam o céu e florestas inexploradas dos confins do mundo se encontra uma pequena cidade onde a tecnologia ainda não chegou e a paisagem o homem quase não mudou. Tal isolamento já a torna uma joia rara nos dias de hoje, porém, se não bastasse, ela ainda conta com outro fato quase tão peculiar quanto seu surgimento: cada um de seus habitantes fala uma língua diferente. Como isso é possível? Ninguém sabe. Mas é certo que, mesmo sendo no máximo algumas pessoas de uma mesma família que conseguem se comunicar em um mesmo dialeto, o comércio, as transações e o convívio fluem como se todas se entendessem muito bem e de fato, de algum jeito, se entendem.

Certo dia um forasteiro apareceu. Ele ficou maravilhado com aquele pequeno vilarejo e com as pessoas que o habitavam e logo percebeu que não havia uma língua em comum, que cada um tinha seu jeito próprio de se comunicar. Achou tudo aquilo muito estranho, mas viu uma oportunidade no ar, de onde ele vinha não era ninguém, mas ali, naquele lugar, poderia ser rei se fizesse com que aquelas pessoas perceberem que havia um jeito de todas falarem a mesma língua. Então colocou seu plano em ação: elegeu o idioma que mais lhe agradava, montou uma escola e espalhou a novidade. Em pouco tempo cada vez mais curiosos e inocentes atendiam as suas aulas, querendo conferir o mais novo empreendimento do vilarejo e se encantando com a nova forma de se pronunciar.

Meses se passaram e o forasteiro não poderia estar mais contente, seu plano ia de vento em polpa, quase todos da cidade já falavam a língua que ele havia escolhido e ele era tratado como uma celebridade entre as pessoas. O lugar já mostrava alguns sinais de mudança: novos comércios e oportunidades. Era certo que o vilarejo se expandiria e se continuasse assim, seria reconhecido no mundo moderno e o forasteiro seria o bem feitor que fez com que tudo aquilo acontecesse. Porém coisas estranhas começaram a acontecer junto com a expansão da cidade. Brigas nas ruas, discussões entre vizinhos, pequenos furtos e roubos, que nunca antes foram vistos começaram a aparecer. As pessoas já não eram mais tão felizes, viviam com as caras emburradas e por muito pouco perdiam a paciência uns com os outros. O ódio e o preconceito, nunca antes pronunciados, agora haviam se instalado ali. Já não mais era a mesma cidade que o forasteiro tanto admirara assim que havia chegado a ela. Talvez fosse somente questão de adaptação, logo tudo se ajeitaria novamente, pelo menos assim ele esperava. Contudo, em uma noite de verão, o pior aconteceu. Não soube como começou e nem como proceder, só se lembra de ter acordado em sua casa com os gritos histéricos das pessoas nas ruas e logo correu para ver do que se tratava. Uma das casas havia pegado fogo. Alguns tentavam apagá-lo enquanto outros queriam entender o que tinha acontecido. Não demoraram a descobrir que o fogo havia sido proposital, o primeiro crime com vítimas fatais da história do vilarejo havia acontecido, duas pessoas haviam morrido por culpa da intolerância que agora existia. Desgostoso, o forasteiro decidiu ir embora da cidade na manhã seguinte e arrumou suas coisas. Não entendia o porquê daquilo estar acontecendo, pensou que o vilarejo era uma causa perdida no final das contas, por isso a tanto fora esquecido. A melhora na comunicação deveria ter trazido progresso e não desordem. Pegou sua mala e partiu, sem nunca mais olhar para trás.

A cidade nunca mais fora a mesma. Com o tempo, assim como o forasteiro havia previsto, ele ficou conhecida no mundo moderno, mas nunca teria nada de especial se comparada a qualquer outro lugar. Os habitantes nem se lembravam mais do porquê de terem vivido tão isolados por tanto tempo e o que os tornavam tão diferentes. O forasteiro acertou em todas suas previsões, porém não percebeu que o que a fazia o vilarejo tão especial e o que realmente havia lhe encantado era justamente a forma de comunicação única que ela possuía. Com certeza tinha suas limitações, mas foi assim que os habitantes do lugar aprenderam a respeitar as diferenças uns dos outros e a, principalmente, pensar antes de falar. Viviam uma vida simples e não tinham espaço para dizer mais do que deveriam. Agora que podiam se expressar da maneira que quisessem, não pensavam duas vezes antes de falar e foi exatamente neste ponto que acabaram esquecendo o valor das palavras. O forasteiro fez com que ganhassem o mundo, mas perdessem o que era essencial.

Kazuki – 4 anos antes

Kazuki já andava pelos corredores da JAXA como se estivesse em sua própria casa, nos últimos tempos passara mais tempo ali do que em qualquer outro lugar que pudesse imaginar. Estavam trabalhando em um projeto importante em parceria com os Estados Unidos já havia algum tempo e as coisas só pareciam ficar cada vez mais intensas conforme o prazo final se aproximava. Ele se considerava sortudo, tinha tudo o que queria no momento, adorava o seu trabalho e era abençoado por ter conseguido seu primeiro emprego justamente na agência espacial japonesa, lugar que sempre fora a sua meta de vida. Além disso, atualmente estava trabalhando em parceria com a sua namorada, o que fazia com que o serviço lhe agradasse ainda mais. Sakura era engenheira mecânica e trabalhava em uma empresa privada, porém a equipe no projeto atual estava precisando de uma pessoa qualificada em seu ramo de atuação e embora a JAXA contasse com os profissionais mais capacitados do mercado, Kazuki conseguiu dar um jeito para que a contratassem como consultora temporária na ocasião. Contudo, como ele havia previsto, Sakura com seu excelente trabalho, acabou conquistando todos por ali e ficando até o final do empreendimento.

Hoje ele queria sair cedo da agência, Sakura ainda não sabia, mas já estava tudo organizado para a entrevista de noivado com os pais dela naquela noite. Os dois já namoravam há muito tempo, praticamente foram o primeiro amor um do outro e ele já conhecia muito bem a família de Sakura, mesmo assim Kazuki queria fazer tudo conforme as mais antigas tradições, pois ambas as famílias prezavam muito por isso e, embora não admitisse, ele também era um fã dos bons costumes. Quando chegou ao restaurante do hotel, Sakura e seus pais já estavam ali. Ela o olhava com desconfiança enquanto ele se aproximava da mesa, mas seu nervosismo era tanto que praticamente puxou a cadeira de uma vez, sentando-se sem ao menos olhar para sua futura esposa. O jantar transcorreu como planejado e quando Kazuki anunciou que queria pedir a mão de Sakura formalmente a pequena japonesa sentada ao seu lado sorriu debulhando-se em lágrimas. Ele já sabia que os pais dela não se oporiam ao compromisso, ambas as famílias já esperavam por esse dia fazia algum tempo, então informou que já tinha tomado a liberdade de marcar o noivado oficial para o próximo domingo.

Era uma manhã maravilhosa de domingo, o sol entrava por entre os entrelaçados de bambus formando quadrados pequenos no chão do recinto. Kazuki vestia um terno escuro, assim como seu pai, enquanto sua mãe usava um quimono florido tradicional. A sala começava a cheirar ao incenso que, para espantar a ansiedade, ele havia acendido alguns minutos antes. Sakura adentrou a sala com um quimono florido em tons de azul combinando com o enfeite que prendia seu cabelo em um coque alto. O coração de Kazuki bateu acelerado, pensou que nunca a tinha visto tão linda quanto naquele momento. Todos ocuparam seus lugares em seus tatames se sentando em cima de suas pernas em posição de reverência. O patriarca de cada família puxava as duas fileiras, de frente um para o outro, seguidos por suas esposas e por último o casal que noivava naquele dia. Os três pares se reverenciaram algumas vezes e logo após trocaram presentes entre si. Assim que as apresentações formais foram feitas, o casal foi até a imagem de Buda que ficava na parede ao centro da sala e com preces e orações agradeceram aos Deuses pela graça alcançada, fazendo oferendas aos mesmos. Seus pais deixaram os tatames e seguiram o mesmo exemplo dos filhos.

Kazuki esperava por Sakura no banco do parque enquanto olhava os peixes que pulavam ocasionalmente para fora do lago. Muita coisa passava por sua cabeça, tanto tinha acontecido só naqueles últimos tempos! Fazia um pouco mais de dois meses que tinha ficado noivo e o encarregado do projeto em que estavam trabalhando, assim que soube das novidades, chamou o casal para uma reunião. Nesta, ele explicou o porquê de estarem desenvolvendo aquele projeto em específico e devido as circunstâncias contou qual que era o objetivo com tudo aquilo. Kazuki ainda não sabia o que pensar sobre o assunto, se fosse há algum tempo atrás teria aceitado sem nem piscar, porém agora havia muita coisa em jogo e seu futuro com Sakura era uma delas. Ela também ter sido convidada o deixava ainda mais confuso, pois era certo que sem ela, ele não iria a lugar algum. Por outro lado, pensar em Sakura, tão frágil e delicada, participando de algo como o que fora descrito a eles era tão assustador quanto deixar ela para trás.

– Faz muito tempo que você está aqui? – Sakura perguntou se aproximando e sentando ao lado de Kazuki. Ele sorriu.

– Não muito – ele disse suspirando e olhando para o lago novamente. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo.

– Temos que tomar uma decisão – Sakura disse olhando pela primeira vez para o parceiro e quebrando o silêncio. Ele acenou positivamente com a cabeça. – Você já sabe minha opinião a respeito do assunto, só falta você decidir o que quer! Mas saiba que vou te apoiar no que quer que decida – ela disse confiante. Kazuki virou para o lago mais uma vez e suspirou. Ele sabia que ela queria ir, já tinha dito isso diversas vezes e, apesar do medo, ele também queria. Mas algo lhe dizia que aquilo não era uma boa ideia. E o casamento tradicional que queria? Isso não seria nada tradicional. Com sorte partiriam logo após o casamento sem tempo para mais nada. E seus planos futuros? Pensando bem, aquilo de algum jeito também sempre esteve presente em seus planos. Respirou profundamente e tomou uma decisão.

– Se você quer e eu também, então porque não? – ele disse olhando para sua amada. Sakura bateu feliz as palmas e o abraçou. A pequena japonesa, já se levantando, virou-se para encará-lo.

– Temos que adiantar os preparativos para o casamento! Quero viajar aos Estados Unidos já como a Sra. Kimura. – Kazuki deu risada.

– Mas para eles você ainda será Okada, todos seus projetos ainda serão assinados com seu nome de solteira.

– Detalhes, meros detalhes Kazuki. Você se preocupa muito com eles! – ela disse já fazendo seu caminho de volta a JAXA e deixando Kazuki no parque rindo sozinho.

O prêmio

Esta é a história de Jorge, um escritor. Sim, um escritor. Não um qualquer, mas sim o autor de inúmeros best-sellers de autoajuda sobre relacionamentos. Podemos dizer que isso o torna uma pessoa bem sucedida, não é mesmo? Tem fama, tem dinheiro, reconhecimento, o que mais poderia querer? De fato nunca pedira por mais nada, seria completo se não fosse um pequeníssimo detalhe: sua paixão sempre fora as fantasias. Não vamos entendê-lo mal, sempre fora grato por tudo o que tem, gosta do que faz e dos fãs que o seguem, nunca negou que tem uma boa vida, mas seu coração pulsava mesmo sempre que se sentava para inventar uma história fantástica. Sabe aquelas que fazem sua imaginação viajar entre mundos, reinos distantes e lugares inalcançados? Eram nessas dimensões que Jorge adorava se encontrar. Naquelas ficções que somente poderiam existir nas páginas de um livro ou nas películas de um filme. Ele tentava fazer com que seu sonho se tornasse realidade, sempre postava seus contos em sua página junto com os outros textos que já faziam sucesso, mas eram poucos os fãs que realmente liam ou se interessavam por eles, enquanto todos os outros eram procurados e elogiados, suas fantasias sempre ficavam de lado. Não era sucesso o que queria, isso ele já tinha, Jorge queria partilhar seu sonho, saber que alguém estava naquelas terras distantes junto com ele, que não estava sozinho nesta jornada.

Chegou a comentar sobre suas frustrações com amigos e conhecidos, porém todos lhe diziam sempre a mesma coisa: “Você está sendo dramático! Lógico que as pessoas leem suas obras, sejam elas quais forem, afinal você não é o grande Jorge?”, mas ele não estava convencido e arquitetou um plano para finalmente provar quem carregava a razão. Na manhã seguinte publicou em seu site o seguinte texto:

Não direi qual, mas para aqueles que lerem meus textos até o final, em um deles encontrará um prêmio excepcional. Se te tocar, provavelmente será nele que irá encontrar. A última dica que lhes ofereço é que será algum de meu total apreço.

E assim Jorge fez. Alguns dias depois de seu anúncio continuou a postar seus textos sobre relacionamentos e seus contos fantásticos, mas nenhum deles continha o tal tesouro, por hora, queria somente saber qual seria a reação provocada e o resultado não poderia ter sido outro, seus acessos haviam triplicado e as pessoas não paravam de comentar ou tentar adivinhar qual seria o prêmio e em qual dos textos estava contido. Até mesmo seus contos, agora, estavam sendo mais requisitados, mesmo que a maioria ainda só os estivesse lendo por curiosidade, pois eram aqueles já haviam desistido de procurar nos textos mais famosos e agora estavam dando uma chance às fantasias, com a esperança de ali encontrar o grande tesouro a tanto mencionado. Jorge decidiu que já era hora de dar aquelas pessoas o que elas procuravam, então escreveu como nunca antes na vida. Dia e noite dedicou-se aquela que seria sua maior obra prima, reuniu em uma única história todos os elementos que mais apreciava: a ficção, a fantasia, terras distantes, povos desconhecidos, amores proibidos, guerreiros que viraram mitos e corações partidos. Era essa! Esse seria o texto que esperava que mudasse a vida de pelo menos um de seus fãs. A história tinha ficado enorme, muito maior do que o número máximo de caracteres que seria aceitável para um post em uma rede social, mas nem isso o intimidou, de fato até nisso ela estava perfeita, afinal serviria muito bem para aquilo que queria tanto provar: encontrar pelo menos uma pessoa que realmente se aprofundasse em um texto complexo nos tempos modernos. Passaram-se meses e sua página continuava a ter milhares de acessos, as pessoas não haviam desistido do tal prêmio e ainda questionavam como este seria apresentado. Talvez um trocadilho que indicasse a quantia em dinheiro que receberiam ou o lugar para onde viajariam? Mas apesar do sucesso, Jorge se via cada vez mais frustrado. Enquanto todos os outros assuntos triviais “bombavam” na internet, seu pedaço de arte permanecia intacto em meio a tantas outras histórias. Recebia algumas curtidas aqui e outras ali, até alguns comentários, porém, infelizmente, nenhum deles lhe indicava nada a não ser que as pessoas estavam desesperadas e atirando para todos os lados, sem realmente saberem o que procuravam. Ele estava perdendo as esperanças, apesar de sempre ter dito o contrário, no fundo queria acreditar que teria, pelo menos, uma única pessoa que realmente leria sua tão amada obra e por consequência entenderia o fundo de sua alma. Até que em um certo dia, o milagre aconteceu. Já tinha se conformado que seria o único a viver naquele mundo, quando naquela manhã viu uma coisa que encheu novamente seu coração de esperanças: um simples comentário bastou para que toda sua visão de mundo mudasse.

Não sei qual seria esse prêmio de que tanto os outros falam, somente buscava alento para o meu coração quando comecei a ler o seu texto, mas acho que, sem querer, o acabei encontrando. O guerreiro indomado e suas terras míticas acabaram me salvando sem nem mesmo eu ter esperado. Então, talvez o prêmio até seja o dinheiro ou a viagem que todos estão buscando, mas poder me aventurar novamente nessa fantasia para mim já bastaria.”

Ele tentou saber um pouco mais sobre o usuário que havia feito o comentário e ficou impressionado ao descobrir que em tantos detalhes da vida do cidadão eram comuns ao seu próprio conto. Percebeu que por mais que seu texto fosse fantástico, sua história era mais real para aquela pessoa do que qualquer uma outra de autoajuda que já havia escrito. Quando começou tudo aquilo, Jorge só queria provar que as pessoas não liam seus textos realmente e se achasse alguém que o fizesse, com certeza, deveria ser recompensado. Mas ele não esperava que o prêmio verdadeiro seria dele afinal, pois aquela única pessoa lhe fez ver que o bom leitor não era aquele que tinha os mesmos gostos que ele e sim, aquele que tirava o melhor de tudo que lhe era apresentado. Daquele dia em diante não se preocupou mais em saber se os outros estavam tirando a lição correta de seus textos, nem mesmo buscou mais um parceiro para as suas aventuras, sabia agora que bastava ser de coração para que todos os outros o seguissem aonde quer que fosse.

Josh – 3 anos antes

Já fazia alguns dias que Josh estava trabalhando de casa. Tinha pedido um afastamento para resolver alguns assuntos pessoais, algumas regularizações de documentos da casa que não poderia mais adiar. Como estava no meio do desenvolvimento de um projeto importante, a solução em que chegaram foi a que ele fizesse o que tinha que fazer, porém continuasse com o seu trabalho remotamente. Josh não se importou com o acordo, sabia que não conseguiria sair no meio do projeto e na verdade nem ele queria isso. No começo ficou preocupado com o que seu parceiro iria pensar, mas logo se tranquilizou. Peter não era do tipo sociável, provavelmente nem notaria sua ausência e com tanto que Josh entregasse sua parte do acordo sabia que ficaria tudo certo. Fazia novamente seu caminho para o cartório da cidade, já tinha perdido as contas de quantas vezes tinha ido e voltado daquele lugar somente naqueles três dias em que estava fora da empresa, hoje era sua última chance de conseguir resolver aquela novela, pois voltaria a trabalhar normalmente no dia seguinte, já tinha perdido muito tempo com tanta burocracia. Josh tivera uma infância difícil em um bairro periférico da cidade, seu pai havia sumido quando ele ainda era uma criança e sua mãe teve que, sozinha, criá-lo e a seus quatro irmãos. Hoje em dia ele morava sozinho com sua mãe, todos os outros já estavam casados ou tinham sumido na vida.

– Mas como assim ainda não liberaram? Não é possível uma coisa dessas – ele disse impaciente batendo no tampão da mesa.

– Isso é assim mesmo! – a atendente respondeu um pouco intimidada. – Informaremos por e-mail assim que toda a documentação tiver regularizada.

Josh saiu do recinto bufando de raiva, com certeza não era a resposta que ele queria escutar. Tentou se acalmar pensando que pelo menos a papelada estava certa, era só mesmo ter paciência para esperar algum figuração ter a boa vontade de liberar a documentação. Foi pensando no meio do caminho em como as coisas em sua vida pessoal andavam difíceis nesses últimos tempos, parecia que nada do que fazia acabava dando certo, felizmente, pelo menos profissionalmente, isso parecia estar indo no sentido oposto. Decidiu que assim que chegasse a sua casa terminaria sua parte do projeto e enviaria para a empresa, não queria ouvir no dia seguinte sermões ou qualquer outra reclamação sobre ele não ter cumprido com a sua obrigação. Passava da meia noite quando ele finalmente conseguiu colocar os últimos arquivos na rede da companhia. Estava cansado, queria somente tomar um banho e ter uma longa noite merecida de sono. Josh foi até a cozinha tomar um copo de água quando seu celular começou a vibrar no bolso da calça.

– Josh, graças a Deus que você atendeu! – A voz de sua irmã soava urgente do outro lado da linha. – Venha me ajudar, por favor! O Paul endoidou – ela disse a frase entre soluços. Josh escutava sons abafados de batidas na porta e a voz do marido de sua irmã gritando seu nome ferozmente.

– Onde você está Alisha?

– Estou em casa, trancada no banheiro. – O som das batidas continuava e a cada investida Alisha soltava um soluço de desespero. – Por favor, Josh, venha rápido! E não conte nada para a mamãe. Por favor!

Josh dirigia a toda velocidade pela cidade, passando cada sinal vermelho que tentava fazer com que ele diminuísse o ritmo. Ele sempre soube que Paul era um sádico, já havia alertado Alisha antes mesmo de se casar que o sujeito não prestava, mas ela pensou ser somente implicância de sua parte. Se aquele sujeito tivesse feito algo a sua irmã… O sangue de Josh fervia enquanto ele cortava as ruas noite a dentro. A porta de entrada da casa estava entreaberta e ele não pensou duas vezes, invadindo o lugar em um rompante.

– Alisha! – gritou, chamando pela irmã. Um homem um pouco menor do que Josh, de cabelo raspado e pele clara apareceu no corredor. Parecia estar bêbado e muito transtornado.

– O que você está fazendo aqui? Deixe-nos em paz! Isso é assunto de marido e mulher – ele falou enrolado encarando Josh.

– Josh! – Alisha apareceu e saiu correndo de encontro a Josh abraçando-o fortemente. Ele retribuiu o abraço sem tirar os olhos de Paul em nenhum momento, depois afastou com delicadeza a irmã para enxergá-la melhor. Seus olhos estavam marcados por hematomas e seu lábio tinha uma rachadura de um machucado recente que ainda vertia um filete de sangue.

– Seu desgraçado! – Josh empurrou a irmã para o lado e avançou para cima de Paul. Alisha tentou parar o irmão enquanto este espancava o outro homem repetidamente. Paul já estava inconsciente quando o barulho das sirenes invadiu o ambiente e homens uniformizados entraram no local, contendo Josh e o levando para a viatura.

Já fazia três dias que Josh estava preso naquele cubículo. Agora que ele andava de um lado ao outro da pequena cela se sentia arrependido. Não de ter batido em Paul, ele pediu por aquilo, mas por ter perdido a cabeça. Alisha já tinha contado sua versão da história aos policiais, mas Paul estava internado em estado grave no hospital e como aquela agressão não era a primeira na ficha de Josh, ele, desta vez, iria precisar de um bom advogado se quisesse sair desta livre. Por que você nunca pensa antes de agir, Josh? Ele repetia a frase a si mesmo como um mantra. Seu coração começou a acelerar, estava acabado! Não fazia nada direito e naquela altura do campeonato já teria perdido a única coisa boa que tinha, seu emprego. Justamente agora que estava participando de algo tão importante e que esperava colher grandes resultados disto, estava ali trancafiado como um animal selvagem. Os guardas o levaram para a sala de visitas. Uma mulher elegante, alta, loira e de olhos claros o esperava dentro do recinto e assim que o viu entrar abriu um sorriso sagaz. Josh olhou confuso por um momento para ela, seria sua nova advogada?

– Josh Noah? Sou a Srta. Velis, trabalho com o governo. Por favor, sente-se – ela disse indicando a cadeira a sua frente, Josh ainda confuso fez o que a mulher sugeriu e esta olhou para ele satisfeita. – Vou ser direta com você, Sr. Noah, o motivo de eu estar aqui é porque queremos soltá-lo e fingir que nada disso aconteceu, mas antes preciso que escute a proposta que temos a lhe fazer!

Vida de solteira

Chega disso! Valentina levantou, foi até o banheiro e lavou o rosto. Até quando ia ficar nesse mesmo ritmo? Estava na hora de esquecer o passado e seguir em frente. Alias já tinha passado da hora! Ele não era a única pessoa no mundo por quem poderia se apaixonar. Sentou na cama e pegou o celular. Sua amiga tinha lhe falado a respeito de alguns aplicativos de paqueras, fizera a maior propaganda dizendo que eram a sensação do momento, que todos agora só marcavam encontros por eles e que sair com alguém sem selecionar antes era coisa do passado. Sem pensar duas vezes, foi até a lojinha de aplicativos do celular e baixou o mais famoso deles. Assim que fez seu cadastro e arrumou suas preferências já começou a passar pela lista de homens que lhe era oferecida na telinha, um após o outro. Aquilo era um cardápio de homens! A foto dos pratos com uma breve descrição do que continham abaixo. Deu risada consigo mesma, se era assim para ela, o inverso também era verdadeiro, tinha acabado de virar uma comida. Bem, já que era assim resolveu escolher os que mais lhe apeteciam. Sim, não, sim, não, não, não. Deus me livre! O que é isso? Ah, esse parece legal! Depois de passar algum tempo nisso acabou cansando e resolveu largar o celular de lado e ir tomar um banho. Sentiu-se velha, o mundo estava muito mudado mesmo, um cardápio para encontros? O que mais iriam inventar?

Valentina já trocava mensagens com um dos pratos há algumas semanas. Ela não acreditou quando combinou com um dos rapazes e no mesmo dia ele veio puxar conversa. Ela tinha subestimado o poder do aplicativo, não é que funcionava mesmo? Achava estranho conversar com uma pessoa que não conhecia, mas o moço parecia ser bem afeiçoado, bom de papo, educado, talvez aquilo realmente fosse o futuro! Mesmo relutante, acabou aceitando finalmente o convite dele para sair. Olhava indecisa sua imagem no espelho, que roupa usar em um encontro com uma pessoa que nunca vira antes? Decidiu-se por um vestido azul básico. Haviam combinado de se encontrarem em um parque e depois decidiriam o que fazer dali. Ela que sugerira o lugar, algo público e ninguém lhe buscaria em casa, assim se o cara fosse um psicopata, testemunhas não faltariam e a estratégia também lhe assegurava em caso do sujeito ser um louco, afinal malucos não podem invadir sua casa no meio da noite se não sabem onde você mora. Terminou de passar uma maquiagem leve, penteou o cabelo e saiu.

Ela olhava nervosa para a entrada do parque, por que, diabos, tinha concordado com aquilo? Estava enferrujada e logo de cara resolvera fazer uma coisa maluca daquelas? Onde estava com a cabeça? Viu um rapaz de cabelos pretos arrepiados, alto e magrinho entrando pelo portão. Estava um pouco diferente das fotos, mas era ele, tinha certeza. O rapaz acenou ao reconhecê-la e ela retribuiu o gesto. Bonitinho! Pensou mais aliviada. O que era aqui em sua cintura? Uma pochete? Sério mesmo que alguém usava isso nos dias de hoje? Resolveu não julgar o livro pela capa. Apesar daquela não ser sua primeira escolha no mundo da moda, nem mesmo a última, como diz o velho ditado “gosto não se discute”, e não era ela que iria contradizer a velha sabedoria disso agora, não é mesmo? Eles andaram juntos pelo local e no começo a conversa lhe pareceu muito agradável, assim como as trocadas virtualmente, quase a fez superar o horrível acessório de moda que balançava para cima e para baixo a cada passada que ele dava. Mas em dado momento o assunto acabou girando somente em torno da vida de sua companhia, o que fazia, onde morava, do que gostava e não gostava, seu ponto de vista sobre aparentemente tudo o que era vivo no universo, ou seja, não lhe faltavam opiniões. Valentina até tentou falar algo, mas ele a cortava em toda ocasião que podia. Nunca pensou que um cara que ainda usava pochete fosse tão egocêntrico! Decidiu, novamente, não se apegar muito a isso, talvez fosse só o nervosismo agindo. Já escurecia quando ele sugeriu que fossem jantar em algum lugar. Agora sim o rapaz adquirira pontos positivos com ela! Estava cansada de andar e morrendo de fome.

Valentina olhava emburrada para o grupo de adolescentes que ria alto na mesa ao lado da sua na lanchonete. Ela nunca fora do tipo que achava que homens eram obrigados a pagar tudo no primeiro encontro, mas quando ele perguntou se eles poderiam ir ao fast food da esquina do parque porque estava sem dinheiro, imaginou que ele estava sugerindo algo tão barato porque quisesse fazer um charme pagando a conta, então aceitou satisfeita. Qual não foi sua surpresa quando além de nem se oferecer para pagar o seu lanche, ele ainda ter pedido para que ela lhe pagasse uma casquinha, pois estava sem trocado?

– Seu carro está aqui perto? – ele perguntou enquanto saiam da lanchonete.

– Não, vim de táxi, vou chamar outro para voltar – ela respondeu já procurando o celular dentro da bolsa.

– Não precisa, deixa que eu te levo.

Finalmente ainda existia cavalheirismo nesse mundo! Nem tudo estava perdido, afinal. Valentina olhou em dúvida para ele. Tinha passado praticamente o dia todo com aquela pessoa e nada de ruim acontecera. Descobrira que ele era um egocêntrico e muquirana sem senso algum de moda, mas dificilmente seria um psicopata. Aceitou a carona, seria uma troca justa pela casquinha. Não conversaram muito durante o trajeto, mas é lógico que o pouco do diálogo que tiveram foi, mais uma vez, voltado para o mundo dele. Quando estavam quase chegando a rua de Valentina eles escutaram um estouro seguido de barulho de borracha arrastando. Sério mesmo que o pneu tinha furado? Pelo menos era uma coisa fácil de ser consertada! Eles saíram do carro e foram verificar. Ele foi pegar o estepe e o macaco no porta malas e começou a trabalhar enquanto ela ficou em pé atrás dele observando.

– Você pode me ajudar aqui? Não estou conseguindo tirar os parafusos. – Valentina olhou para os lados, verificando se ele estaria falando com outra pessoa, quando percebeu que a pergunta era direcionada a ela, balançou a cabeça em descrença.

– Mas eu estou de vestido! – argumentou.

– Sem problemas, é só prendê-lo no meio das pernas que ninguém verá nada. – Valentina se agachou ao lado do rapaz segurando a ponta do vestido enquanto praguejava por dentro. Pensou em recusar, mas quanto mais rápido aquilo terminasse, mais rápido ela se livraria do encosto.

Ela ainda tentava limpar a graxa da mão quando entrou em casa. Estava pensando em tudo de errado que tinha dado naquele dia e em quão frustrada estava. Tudo bem, tinha que admitir que o sujeito não era de todo ruim, afinal tinha lhe trazido sã e salva para casa, não tentara nada que ela não quisesse e nem forçou a barra em nenhum momento. Quem sabe sua falta de noção das coisas não melhorasse com o tempo? Sentiu a vibração de seu celular tocando dentro da bolsa. Quem poderia ser? Quem ainda ligava para os outros hoje em dia? Atendeu e escutou o toque típico de uma ligação a cobrar.

– Oi, sou eu. Desculpe estar te ligando a cobrar, mas é que meu pacote de dados acabou. Eu achei dez reais aqui no carro e liguei para perguntar se era seu, mas depois me toquei que você deixou aqui para pagar a gasolina da carona, não é? Deve ter sido mais do que isso, mas obrigado! Poxa, adorei te conhecer, quando vamos marcar o próximo encontro? – Valentina desligou com raiva o telefone. Se fosse continuar com o aplicativo teria que ser mais criteriosa ao selecionar o seu prato no cardápio, porque aquele havia vindo estragado.

Peter – 3 anos antes

Ele repassava os detalhes de seu projeto no computador, enquanto escutava no fone de ouvido as notas pesadas de sua banda favorita de rock. Mesmo que, naquele projeto em específico, tivesse um parceiro, Peter preferia trabalhar assim: sozinho. Josh quase nunca o perturbava, sabia que ele rendia melhor se fosse deixado quieto no seu canto e só acabavam se encontrando quando realmente era necessário. Ele gostava de Josh, apesar de seu pavio curto, era um bom sujeito e entendia as particularidades dele sem questionar, além disso, era um ótimo profissional. Engraçado, agora que pensara no assunto, percebera que já fazia algum tempo que não o via, o que será que estaria tramando? Deu de ombros, logo mais apareceria. Estavam em um momento crucial do projeto e ele não deixaria de cumprir com sua parte. Peter olhou para o relógio no canto direito de sua tela, já era tarde, mais uma vez ele perdera a noção do tempo, era o quarto dia, só naquela semana, que tinha ficado além do horário, se continuasse nesse ritmo ia acabar pegando um bom tempo de folga só de horas extras. Desligou o computador, pegou sua mochila e foi embora para casa.

Peter gostava do que fazia em sua empresa, mas sua paixão mesmo era o que fazia fora dela, em suas horas vagas. Hackear tinha começado como um hobby, invadia pequenas redes por diversão, só para testar se conseguia, porém percebeu que era bom nisso e logo outras pessoas também e com isso começou a fazer alguns bicos para empresas que o contratavam somente para testar suas barreiras virtuais. Contudo, as habilidades de Peter com o computador eram nada se comparadas ao seu alter ego: StreamingP. Esse sim era uma celebridade no mundo virtual. Cada competição, oficial ou não, cada trabalho arriscado ou invasões ousadas que surgiam na boca da comunidade, o StreamingP estava envolvido. Peter gostava disso, era como se fosse um super herói ou um justiceiro, que todos conhecem, mas ninguém sabe sua real identidade. Ele estava logado usando o seu alter ego em um dos fóruns da comunidade quando alguém lançou um desafio: hackear os sistemas da NASA. Isso seria moleza! Já tinha invadido sistemas muito mais complexos que esse. StreamingP aceitou o a empreitada e começou a fazer suas manobras, em menos de dez minutos já estava dentro dos sistemas da Agência Espacial. Não satisfeito com o feito, ele começou a varrer os computadores em busca de algo que realmente valesse a pena. Passou por um, dois, três firewalls, mas nada do que via lhe chamava a atenção, até que se deparou com um tal Projeto SIRIUS. Caramba! Esse sim estava bem protegido. Tentou abrir caminho por aqui e por ali sem muito sucesso. A adrenalina do esforço crescendo a medida que se frustrava com algum comando dado, era isso que queria sentir desde o começo, era disso que gostava. Ficou nesse jogo de gato e rato por alguns bons minutos até que finalmente venceu as barreiras de seu adversário. Tudo aquilo para esconder mais um projeto de viagem ao espaço? Que decepção! Aquilo era tão velho quanto o homem pisar na lua. Mas, espere, o que era aquilo? Tinha algo de diferente com esse projeto. A animação voltava ao seu ser a cada palavra lida. Seria mesmo possível que estivessem planejando tal coisa? Aquilo era grande! Mais do que depressa Peter saiu dos sistemas e apagou todos os seus rastros, não queria que soubessem que ele esteve bisbilhotando tais informações, isso poderia lhe trazer muitos problemas.

Josh não tinha aparecido novamente na empresa? Que estranho! Será que tinha sido demitido? Improvável, teriam lhe avisado ou já colocado outro em seu lugar, o projeto em que estavam trabalhando era muito importante para que não o fizessem. O que será que tinha acontecido com ele então? Peter sentou em sua mesa e assim que começou a acessar os arquivos em que estava trabalhando no dia anterior percebeu que a parte que cabia ao seu parceiro estava toda ali. Quando foi que ele tinha conseguido inserir os dados se nem estava vindo ao serviço? Não era de sua conta, o importante era que o projeto estava pronto. Ele salvou as últimas alterações na rede e avisou seu gerente, que ficou extremamente animado com a notícia dizendo que passaria o quanto antes o trabalho para o contratante. Sem muito mais o que fazer, Peter passou o resto do dia analisando alguns projetos menores que ainda estavam em andamento e pesquisando algumas informações na internet.

– Peter, tem como você vir a minha sala um minuto? O nosso cliente daquele projeto está aqui e ele quer tirar algumas dúvidas com você. – Peter levou um susto quando seu gerente apareceu de repente atrás dele. Nossa, já estavam ali? Aquele pessoal realmente estava com urgência no serviço.

Ele se levantou e seguiu seu gerente até sua sala. Enquanto caminhava o outro homem começou a contar-lhe um pouco mais sobre o cliente.

– Sei que tínhamos mantido em sigilo a informação até agora, pois assim nos foi solicitado, mas como requisitaram sua presença, acredito que não tenha mais porque esconder. – Peter olhou indiferente para o homem ao seu lado, não lhe importava saber quem tinha contratado os serviços, mas o seu gerente pareceu não notar o óbvio e continuou. – Nosso cliente é a Agência Espacial.

O sangue de Peter gelou. Seria somente coincidência ele ter hackeado a NASA na noite anterior e justamente eles estarem ali, em seu local de trabalho, para falar com ele agora? Não era possível que tivesse sido descoberto tão rapidamente, ele tinha certeza que havia coberto todos os seus rastros. Eles chegaram a sala e seu gerente abriu a porta, entrando sem cerimônias. O coração de Peter ainda batia acelerado quando o seguiu ao interior do recinto. Um homem pomposo, vestido em um terno bem cortado, se aproximou de Peter e estendeu sua mão em um cumprimento.

– StreamingP? Sou Joshua Kane e acredito que precisamos conversar.

O Nascimento

Maria ajudava a mãe e a tia na cozinha com os preparativos da festa. A ceia deste ano seria simples, pois a maioria da família tinha ido viajar, deixando poucos na cidade para as comemorações de final de ano. Ela puxou uma das cadeiras da mesa e sentou-se. Um pouco ofegante, colocou a cabeça para trás, fechando os olhos. Depois olhou para a barriga enorme, evidência de que logo uma nova vida estaria neste mundo, e a acariciou.

– Você está bem? – sua mãe disse se aproximando.

– Claro! Só queria descansar um pouco os pés – ela respondeu já pedindo a mão da mãe para ajudá-la a levantar. – Vamos, ainda temos muita coisa a fazer. – As duas sorriram uma para outra. Assim que ficou de pé ela sentiu o líquido escorrer por suas pernas, olhou para o chão e sorriu. Depois voltou a olhar para mãe com lágrima nos olhos. – Chame o João! A bolsa estourou.

Todos corriam de um lado ao outro da casa tentando resolver coisas como quem iria, o que levariam e como fariam. Maria já esperava sentada no banco do passageiro de um dos carros, respirando fundo a cada contração que vinha, engraçado como era ela quem estava em trabalho de parto, mas era  justamente a mais calma em toda aquela situação. Por fim decidiram ir todos juntos ao hospital. Maria, sua mãe e João ocupavam o carro que encabeçava a fila, logo atrás vinham seus tios e primos e mais um terceiro automóvel com seus avós. A rodovia estava completamente parada, já tinha se passado mais de meia hora que estavam ali e mesmo assim pouco foi o avanço feito. Era estranho pensar naquele fluxo tão grande justamente na véspera da virada do ano, quem é que arriscaria passar o feriado no congestionamento? Aparentemente muita gente! E lá vinha mais uma contração. Maria segurou no banco e respirou fundo, segurando o grito de dor.

– Não acredito que isso está acontecendo justo hoje! Já era para estarmos lá – João lamuriou inconformado enquanto andava mais uns poucos quilômetros para logo em seguida parar novamente. Ele tentou pensar em outro trajeto, mas a cidade era pequena, e infelizmente o único caminho disponível para o hospital era aquele, o que não seria problema em um dia qualquer, porém para o seu infortúnio, aquela era também uma estrada muito utilizada para destinos turísticos diversos naquela época do ano e o resultado não poderia ser outro. Ele começou a buzinar. Maria soltou outro gemido de dor, o espaçamento entre as contrações estavam diminuindo.

– Pare com isso João, esse barulho todo só está atrapalhando! Não está vendo que ela está com dores? – sua sogra disse segurando a mão de Maria por entre os bancos.

– É justamente por isso que estou fazendo, temos que chegar lá rápido, a senhora tem uma sugestão melhor? – ele respondeu emburrado. O congestionamento ia de ponta a ponta da estrada e nenhuma das filas com dúzias e mais dúzias de carros dava sinal de que iria avançar. Maria viu pelo retrovisor que seu tio saia do carro de trás, enquanto sua tia assumia o volante, e correu até a janela de João. O que mais poderia estar acontecendo agora?

– Tem uma ambulância logo ali na frente, vou correr lá e explicar a situação, enquanto isso tente chegar até ela – ele disse e sem esperar por uma resposta saiu em direção ao veículo.

João começou a buzinar freneticamente e a jogar o carro para cima dos outros para que estes abrissem caminho para ele. As pessoas começaram a xingá-lo, mas ele não se importou, bom mesmo era que a tática estava funcionando, logo chegariam a ambulância. Maria gritou novamente de dor, estava vindo cada vez mais rápido e demorando mais para passar. Ela já não conseguia mais controlar os ânimos. Ao longe, seu tio voltava seguido de um paramédico, que se apresentou e sem cerimônias abriu a porta do passageiro pedindo para que o outro homem o ajudasse a colocar Maria deitada no banco de traseiro do carro e assim que a acomodaram, ele começou a examiná-la.

– Não temos mais tempo, ela terá o bebê aqui! – ele anunciou. Todos olharam espantados para o paramédico que já se arrumava para o procedimento.

– Não, por favor, eu aguento! – Maria implorou – Me coloque na ambulância e ligue a sirene – ela completou ofegante.

– A ambulância está ocupada! Estávamos prestes a ligar a sirene quando esse homem apareceu contando do seu caso. Mesmo que vocês nos sigam, não vai dar tempo, seu bebê está prestes a nascer!

Maria gritou mais uma vez de dor, desta vez o paramédico não esperou por uma resposta e correu até a ambulância, voltando com uma maleta cheia de aparatos médicos. Ele pediu para que a levantassem um pouco, cobriu suas pernas com um pano e colocando sua cabeça abaixo do tecido pediu para que ela fizesse força assim que sentisse o próximo movimento. Maria não sabe quanto tempo passou ali, se fora minutos ou horas. No começo até conseguiu ver sua família e os estranhos que se acumulavam ao redor do carro para ver o que acontecia, ainda conseguia conjecturar, mesmo com as dores e ao esforço, se perguntando o porquê daquilo estar acontecendo com ela. Ainda conseguia pensar que não queria que seu bebê viesse ao mundo daquele jeito. Mas em um dado momento, suas forças se esvaíram e ela somente repetia, mecanicamente, o que lhe era pedido, até que finalmente, como em um passe de mágica, não sentiu mais a necessidade de fazer força, deixando-se cair no banco com a cabeça para o lado. O barulho dos estrondos dos fogos explodiu forte em seus ouvidos e suas luzes invadiram o céu escuro da noite. Ela escutou pessoas gritando de felicidade e se cumprimentando. Que coisa mais linda! Pensou enquanto assistia as luzes coloridas explodirem no céu. Parecia que todos estavam comemorando a chegada de seu bebê ao mundo! Maria mal conseguia escutar o choro de sua criança tanto era o alvoroço feito do lado de fora do veículo e foi por este motivo que somente quando o paramédico aconchegou o pequeno pacote quentinho em seu peito e ela conseguiu olhar diretamente nos olhos de sua filha que percebeu do que tudo aquilo se tratava.

– Parece que você e o novo ano nasceram juntos, minha pequena – ela disse sorrindo. – Bem vinda ao mundo! – falou, beijando a testa de seu neném e aconchegando a pequena criança em seu corpo. Mesmo exausta, seu coração se encheu de alegria e esperança. Mas que ironia aquela, o pior dos cenários possíveis para um final de ano acabou se tornando o melhor dos começos.