A fantasia da noite

Seu vestido era armado demais para aqueles corredores apertados, à medida que andava o tecido esbarrava de um lado a outro nas prateleiras de livros sem fim, levando grande parte deles ao chão. Não sabia onde estava e nem o que fazia ali. Tinha fugido do baile correndo, pois já era quase meia noite e a mágica acabaria, mas ao invés de parar em sua casa dentro do pequeno vilarejo, lá estava ela, naquele lugar desconhecido. Saiu da sala, desceu algumas escadas, virou em alguns corredores e entrou em outro aposento. Escutou risadas. Finalmente! Encontrara alguém que pudesse lhe dizer o que estava acontecendo.

– Com licença senhores, algum de vocês poderia dizer-me onde estou? – Ela levantou a mão tentando chamar a atenção dos dois sujeitos, ambos com vestimentas um tanto quanto esquisitas e um deles levava um cachimbo na boca. Os dois pararam a conversa e a olharam de cima a baixo.

– Outra novata, Poirot! – o homem disse soltando fumaça para o alto.

– Outra novata, Holmes – o outro repetiu ainda encarando a pobre moça. – E parece-me que veio da seção infantil. Qual é o seu nome minha jovem?

– Cinderela – ela respondeu um tanto confusa. O que seria uma seção infantil? Com certeza não era o nome da vila onde vivia.

– Cinderela ela diz – o homem com o cachimbo repetiu e o outro acenou. – Mais e mais deles estão chegando ultimamente, estamos deixando passar alguma coisa, Poirot.

– Com certeza, caro amigo! É nosso trabalho investigar este mistério – o outro respondeu e com isso ambos entraram novamente em uma discussão, ignorando por completo a presença da moça em seu vestido rodado.

Cinderela desistiu de tentar achar uma resposta com aqueles dois e deixou-os com seus devaneios, foi procurar outro alguém que pudesse lhe ajudar. Caminhou mais um pouco até que chegou noutra sala, muito maior que a última, com enfeites estranhos pendurados no teto e mesas espalhadas por todo o salão. Mais vozes. Muitas delas! A moça animou-se, quem sabe ali finalmente teria alguém que pudesse lhe ajudar. Seus passos a guiou até a fonte das conversas e quando lá chegou achou que estava em outro baile. Eram tantas pessoas, todas tão diferentes que achou que poderia ser uma festa a fantasia. Cinderela não sabia, mas ali estavam, todos juntos, soldados da Segunda Guerra, samurais japoneses, dúzias e dúzias de casais românticos e tantos outros personagens das mais variadas histórias. Uma menina passava pelas prateleiras, roubando livros delas e colocando-os debaixo do vestido. Dois meninos corriam pelo salão, riam alegres brincando de pega-pega. Mas que estranho? Um deles parecia trajar um pijama?! Uma mulher com um macacão que parecia em chamas atirava flechas sem parar em um alvo já cansado de tanto ser almejado. A princesa levou um susto quando, de repente, um moleque de óculos e uma marca na testa passou por ela voando em sua vassoura.

– Ei Potter, tome cuidado com isso, já não basta o acidente que tivemos na semana passada! – Um senhor com uma barba tão grande quanto seu cabelo e branca como a neve se aproximou da novata. – Esses garotos! Tão cheios de energia. – Ele abaixou a cabeça fazendo uma reverência à mulher. – Você é nova por aqui, não? Não me lembro de já tê-la visto por aqui.

– Sim! Você poderia dizer-me onde estou? – Ela parecia aliviada. – Não sei como vim parar neste lugar. – O mago deu uma risada amigável, depois virou para a multidão parecendo procurar por alguém, logo uma sombra de reconhecimento passou por seus olhos.

– Merlin, meu caro, temos mais uma aqui para esclarecer tudo que se passa neste lugar. – Um outro senhor, também de barbas e cabelos brancos e longos, se destacou em meio aos outros caminhando ao encontro do amigo e da jovem moça. Aquele que já estava com Cinderela voltou-se novamente para ela. – Meu nome é Gandalf e aquele velho rabugento que vem ali é Merlin, fique tranquila, pois tentaremos sanar todas suas dúvidas.

Assim que o outro mago se juntou a dupla os dois transcorreram sobre a magia que encantava aquele lugar. Explicaram a Cinderela que estavam em uma biblioteca, um lugar onde as pessoas iam quando queriam ler ou estudar, dentro daquilo que eles chamavam de mundo de lá e que todos eles faziam parte das histórias que aqueles livros contavam. Não souberam explicar ao certo o porquê daquela magia, pois as lendas remontavam de anos atrás, mas era de conhecimento geral que um mago muito antigo e poderoso em sua terra um feitiço lançou e com isso a maldição da noite naquele lugar começou. Assim que o Sol se punha, naquela biblioteca, daquela determinada cidade, alguns dos personagens de seus livros criavam vida e com ela permaneciam até o nascer do Sol do outro dia. Todas as noites eram assim e cada vez mais personagens apareciam, desbravavam o mundo de lá e logo voltavam as suas terras, seus reinos, suas casas, suas fantasias.

O dia em que elas sumiram

Não se falava em outra coisa, qualquer meio de comunicação que se utilizasse a matéria de destaque era: “O que aconteceu com as nossas mulheres?”. Não sobrara uma na face da Terra, naquele dia os homens do mundo inteiro acordaram e suas mães, tias, avós, esposas e filhas não encontraram. Como que todas as mulheres do mundo poderiam ter sumido assim ao mesmo tempo? O que poderia ter acontecido? Para onde foram? Quem havia feito isso? Eram as perguntas que não calavam. O mundo inteiro se questionava sobre o paradeiro de todos os exemplares femininos da espécie.

No começo não houvera muita preocupação, pois a teoria comum era que do mesmo jeito que sumiram misteriosamente, voltariam de repente. Com isso o desaparecimento para muitos fora um alívio, um período de descanso das constantes cobranças femininas. Não se escutavam mais coisas como: você vai deixar essa toalha ai, que bagunça é esta, precisamos discutir a relação, amanhã começo o regime, você não me ajuda, não tenho roupa, não me irrita que eu estou de TPM, você não tem responsabilidade alguma, e tantas outras mais. Para os solteiros, casados sem filhos ou sem herdeiros homens, crianças e idosos, o sumiço das mulheres na verdade fora um grito de liberdade. Poderiam comer e se vestir do jeito que quisessem, andar nus pela casa, deixar as coisas desarrumadas, jogar videogame ou futebol até enjoar, sair com os amigos para beber todos os dias, assistir quantos canais de esportes, pornôs e filmes de ação que pudessem suportar. No início fora a vida que pediram a Deus.

Porém, conforme o tempo foi passando, os pequenos prazeres pessoais já não compensavam a falta das mulheres. Aqueles que ainda tinham filhos homens estavam tendo dificuldades em criá-los sozinhos, muitas das obrigações para com a criança eram responsabilidades de suas esposas, a adaptação para ambas as partes estava sendo mais custosa do que se imaginara. O mercado financeiro sofreu um colapso quase que imediato, pois apesar de alguns setores terem seus faturamentos dobrados como comidas industrializadas, automobilístico ou pornográfico, muitos deles sofreram quedas drásticas, afinal as mulheres sempre foram famosas pelo consumismo e no final acabou se descobrindo que era essa compulsão que movimentava a economia de todo o mundo. Algumas profissões deixaram de existir como ginecologia e obstetria, outras tiveram que ser readaptadas por sofrerem uma perda drástica em seu quadro de empregados e pessoas habilitadas para a função e muitos homens tiveram que ser realocados. A violência, a obesidade e os índices de doenças cardíacas aumentaram. Os homens já sentiam falta de suas companheiras, de ter uma relação íntima, e foi aproveitando essa necessidade que uma empresa japonesa de bonecas de companhia acabou se tornando uma das mais ricas da atualidade. Os que não tinham condição de pagar por uma parceira de borracha ou queriam um contato físico, assim como na cadeia, procuraram seus confortos com pessoas do mesmo sexo.

Fizeram de tudo para achar o paradeiro das mulheres e trazê-las de volta, mas era como se elas simplesmente nunca tivessem existido. A vida continuou, a sociedade se adaptou e acabou se normalizando, mesmo assim eles sabiam que era questão de tempo até que a humanidade entrasse em extinção, afinal sempre fora no ventre feminino em que a vida se gerou. Agora elas só existiam em fotos, em filmes antigos e nas imaginações masculinas. Mesmo que alguns já não se lembrassem mais de como era a vida em suas companhias, muitos eram ainda os que alimentavam a esperança de que elas retornassem. Era fato a sobrevivência dos homens a falta delas, tanto masculino quanto feminino sempre foram aptos a fazer o que quisesse, mas fazia falta a sensibilidade, a sabedoria, a alegria delas, suas cores e suas formas. Perceberam que precisavam delas, não pela necessidade de lavar suas roupas ou fazer suas comidas e sim pela importância de suas presenças. A palavra de ordem era que se um dia alguém encontrasse uma mulher, em qualquer parte do mundo que fosse, a tratasse com muito respeito e carinho, pois agora mais do que nunca sabiam o valor que elas possuíam.

O Aluno

João era um senhor na casa dos seus quase oitenta anos que morava em uma cidadezinha do interior, muito simples e bem afastada da metrópole mais próxima. Todo seu sustento e de sua família fora retirado das lavouras e das colheitas, não conhecia outro tipo de vida e, apesar de ter sido dura e muito custosa, tinha orgulho do que conquistara até ali. Agora já não conseguia mais trabalhar com a terra, também pudera, tantos dias debaixo do sol escaldante colhendo dela seus frutos não é para qualquer um! Ainda tinha uma força de vontade incrível, mas seu corpo e saúde não lhe ajudavam mais. Hoje era sozinho, sua companheira há muito havia partido e depois que os filhos saíram da cidade se recusando a ter a mesma vida que ele levara, nunca mais os vira. Não sabia de muita coisa, nunca tivera a oportunidade de estudar, sua vida inteira fora a terra, porém carregara sempre consigo a vontade de aprender a ler. Era por isso que havia se emocionado quando, naquele ano, a primeira escola primaria da cidade fora inaugurada.

– Quero fazer uma matrícula – João disse à professora que estava recebendo os alunos na porta da escola.

– Claro! Se o senhor estiver com todos os documentos da criança em mãos é só ir até aquela salinha aos fundos que a secretária irá ajudá-lo com isso – a moça respondeu sorridente.

– Criança? Não, não! Eu quero fazer a minha matrícula – ele retrucou feliz. A mulher arregalou os olhos de espanto.

– Desculpe meu senhor, esta é uma escola de jardim e primário, talvez você encontre o que procura na cidade – ela respondeu encabulada.

– Minhas pernas já não me deixam mais fazer viagens tão longas. Eu posso estudar com as crianças, não há problema algum para mim nisso – João respondeu sorridente, indiferente ao constrangimento da jovem a sua frente.

– Sinto muito, mas não há lugar para o senhor aqui – ela respondeu certeira, porém estava destroçada por dentro. O homem desfez o sorriso e encarou a mulher com certa dúvida nos olhos. Ela terminou de receber as últimas crianças que chegavam e fechou o portão, deixando João sozinho.

Nas manhãs seguintes, a jovem professora se deparou com o senhor magro e curvo de cabelos grisalhos que a havia abordado no primeiro dia de aula. Ele nunca falara novamente com ela, ficava ali parado no portão com um caderno e um estojo na mão. A cena era de partir o coração. Se aquele senhor estava com tanta vontade de estudar qual era o problema em deixá-lo entrar? O pensamento lhe atormentava noite e dia, se fosse só por sua vontade já teria deixado o pobre coitado entrar, mas sabia que seria um alvoroço na cidade se algo assim acontecesse. Certa manhã, lá estava ele de novo com o seu caderno e estojo nas mãos, molhado da cabeça aos pés por causa da chuva que caia.

– Vamos, entre. Não quero ser responsável por sua pneumonia. – O senhor abriu um sorriso largo e seguiu a jovem até a sala.

Todas as semanas lá estava João, com seu caderno e estojo nas mãos. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Prestava atenção em cada palavra que a professora dizia, fazia todas as lições e nunca faltava. Até mesmo levara alguns livros didáticos para casa a fim de recuperar o tempo perdido. Dava gosto de ver um senhor naquela idade estudar com tanto afinco. As crianças já haviam se acostumado com ele, gostavam de lhe ensinar cada letra do alfabeto e se divertiam com as coisas engraçadas e diferentes que o velho dizia. Até conseguirem a autorização da secretaria da educação sua estadia na escola fora uma luta difícil. Como a professora previra, alguns pais fizeram de tudo para que João fosse expulso daquele ambiente escolar, porém a jovem educadora estava determinada a lutar por ele, e tanta dedicação acabou sendo vitoriosa ao final. Os boatos e comentários de mau gosto ainda rodavam pela cidade. Onde já se viu um homem daquela idade querer aprender alguma coisa agora? Onde estava com a cabeça? Eu que não quero o meu filho perto de um louco como aquele! João ouvia a todos sem se importar com nenhum deles, nunca estivera tão realizado.

Em uma manhã de primavera, quase no final do semestre, João entrou na sala onde somente havia a professora, com lágrimas nos olhos e uma carta nas mãos.

– Srta. Elena, eu aprendi a ler! Há muito tenho essa carta guardada em minhas gavetas e nunca nem soube de quem era ou do que se tratava, graças à senhora agora eu sei. – Ele esticou o braço para que a mulher pudesse pegar o pedaço de papel.

“Querido pai, sei que minha despedida não foi uma das melhores e que fiquei muitos anos afastado, fingindo não ter uma família. Tinha vergonha por ter uma vida e pais tão simples! Eu era jovem e imaturo, não sabia o valor das coisas, porém hoje eu sei, agora consigo entender tudo que o senhor fez por toda nossa família. Estou escrevendo pois quero reatar nossos laços e fazer com que o seu neto conheça esse homem maravilhoso que o senhor é. Sei que encontrará um jeito de ler esta carta, pois você é assim, e ficarei ansioso esperando por sua resposta.”

O Cairara

Em um reino distante havia um soberano muito bom e generoso. Ele tinha sabedoria em demasia e sempre tomava as melhores decisões para seu povo, todos o adoravam. Todos, exceto ele mesmo. Por mais que tivesse diversas qualidades, toda vez que se olhava no espelho o que via era um homem feio, desengonçado e acima do peso. Martirizava-se por não ser esbelto e forte como os outros homens da corte e achava que por mais que fosse sábio e bondoso nunca seria bom o suficiente. Durante anos tentou de todas as maneiras mudar sua aparência, falou com curandeiros, profetas e até mesmo provou algumas receitas milagrosas, mas nada trazia o resultado esperado.

Certo dia, enquanto fazia uma de suas cavalgadas pela floresta, observou um grupo de macacos que de uma árvore um pequeno fruto desfrutava. Notou como eram ágeis e esbeltos e logo pensou em como gostaria de ser como eles. Por vários dias visitou o mesmo local e em todos eles via a família de primatas saboreando as tais frutas, os animais pareciam cada vez mais fortes e saudáveis e foi então que uma ideia lhe surgiu: poderia ser fruto que lhes proporcionasse tanta força e destreza? Pediu para que seus homens colhessem todas as frutas que encontrassem e levassem para o castelo. Lá ordenou ao seu curandeiro que fizesse uma infusão usando o pequeno alimento, esse no começo se recusara a obedecer tal ordem por não saber que espécie de planta era aquela, mas acabou cedendo aos comandos de seu rei e o chá preparou. Por sete dias o monarca tomou o preparo e, além de todas as expectativas, a mistura começou a dar resultados. Seus braços e pernas ficaram mais finos, o tronco mais alongado, perdeu peso e criou músculos onde até então não existiam.

O monarca era só alegria. Sua autoestima estava melhor que nunca, se sentia completo. Era inteligente, bondoso e agora bonito. Começou a frequentar todos os bailes da corte com prazer e tirava todas as mulheres para dançar até o sol nascer. Ficou ainda mais popular, além de um rei generoso, agora ele era conhecido por seu entusiasmo e beleza. Anunciou em todo o reino que pretendia se casar e uma esposa foi procurar. Pensou que a vida seria perfeita enquanto a infusão continuasse a tomar. Mas algo de estranho começou a notar, ainda tinha sua postura ereta e musculosa, mas pelos estavam surgindo em demasia no seu corpo e certa noite reparou que um rabo lhe crescia. Desesperado o chá parou de tomar, porém os efeitos colaterais continuaram a aflorar.

Do rei nunca mais se ouviu falar, ninguém sabe o que lhe aconteceu, em uma noite qualquer ele simplesmente desapareceu e o povoado nunca mais teve outro monarca tão generoso, sábio e bondoso como aquele. O reino se foi junto com seu líder, há muito não existe mais. Ninguém sabe dizer ao certo quando que a ruína começou, porém todos concordam que foi por causa da ausência de um bom soberano que tudo se afundou. A floresta que circundava a cidade ainda existe e ela continua sendo o lar de muitos primatas, dizem que uma nova raça deles surgiu logo após o desaparecimento do rei, os Cairaras. Uma espécie de macacos muito finos e esbeltos e que surpreendem todos que visitam a região por sua inteligência e engenhosidade.

Inspirado na lenda dos Cairaras

O Nascimento da Folia

Eu não tenho local e nem data de nascimento. Já passei em diferentes formas por vários lugares do mundo, nas mais variadas épocas. Representei diversas culturas e credos, fui dos pagãos aos cristãos. Não tenho preconceito, aceito qualquer povo, raça ou religião, onde me chamarem estarei lá para a festa começar. Nem daqui ou dali, de lá ou de acolá, sem lugar fixo onde me encaixar e sem fronteiras para me barrar. Eu sou folião, eu sou do mundo!

Já estive na Babilônia antiga e na Mesopotâmia, época em que eu tinha a mania de subverter os papéis sociais. Transformava prisioneiros em reis, humilhava soberanos em frente aos Deuses e transformava senhores em escravos. Se paro para pensar com clareza em toda minha trajetória eu chego à conclusão de que nunca deixei de ser assim, talvez nunca fora uma mania e sim parte da minha personalidade de fato, já que eu continuei a inverter papéis sempre que meu nome era clamado. Na idade média fiz jovens homens saírem às ruas vestidos de mulher fingindo ser habitantes da fronteira entre o mundo dos mortos e dos vivos, só para comerem e beberem de graça em residências alheias e ainda roubarem beijos das jovens que ali habitavam. As pessoas sempre me viram como um período de liberdade, onde poderiam ser o que não eram ou inventar um novo personagem, ainda hoje, todos aproveitam minha passagem e se transformam no que quiserem.

Quando estive em Roma e na Grécia fui festas que duravam dias, era regado de boa bebida e muita comida, havia diversas danças e rituais. Na época renascentista da Itália participei de teatros improvisados e acabei sendo muito popular por lá até o século XIII. Foram criadas canções em Florença para acompanhar os desfiles feitos em meu nome que até mesmo sustentavam carros decorados. Passei novamente por Roma e fui a Veneza, nestes locais as pessoas usavam máscaras brancas com capuzes que cobriam dos ombros a cabeça toda vez que estavam em minha presença. Era constantemente associado aos prazeres carnais e até mesmo a Igreja, sempre tão rígida, acabou se rendendo a mim transformando-me em um marco de liberdade antes do período de severidade religiosa relacionado a quaresma.

De tantas idas e vindas, de andanças e danças, acabei chegando ao Novo Mundo e foi na época colonial que fiz minhas primeiras aparições com o entrudo, uma festa portuguesa que era praticada por escravos em suas colônias. A cultura foi se transformando e moldando, passando de lugar em lugar e com isso vieram os cordões e ranchos, corsos e até mesmo escolas de samba. Posso dizer, com toda certeza, que viajei muito e ainda participo de tantas outras culturas, mas é em terras tupiniquins onde me sinto mais querido e popular, pois foi nelas onde tive a oportunidade de me manifestar em inúmeras formas. Afoxés, frevos e maracatus também se tornaram minha tradição e de marchinha em marchinha me transformei na maior manifestação cultural do Brasil. Não importa se você é adepto das folias ou só gosta mesmo é de curtir um bom feriado prolongado, porque a verdade é uma só, de um jeito ou de outro estou aqui e vim para ficar.

Já tive vários nomes: Saceias, Bacanais, Saturnálias ou Lupercálias e tantos outros mais; porém nenhum deles foi tão popular como o atual. Prazer, eu sou o Carnaval!

Vida de Solteira – Amigo do Facebook

Valentina estava animada desta vez, nem esperava que fosse ficar tão empolgada com algo tão inusitado, mas estava. Há umas três semanas, um rapaz a havia solicitado amizade no seu perfil do Facebook, ela não o conhecida, mas viu que ele era um amigo de uma colega de um curso que fizera há alguns anos atrás, então resolvera aceitar a solicitação. Parecia um sujeito encaminhado e era bonitinho então, por que não? E desde então os dois não paravam de trocar mensagens. Pensou em como era a vida, já estava há meses naquela porcaria de aplicativo e não tinha conseguido encontrar um cara decente até então e ai, do nada, aparece esse homem tão interessante em um lugar que sempre esteve. Ele já tinha até passado pelo teste do primeiro encontro, a ocasião tinha sido um sonho se comparada aos últimos poucos que tivera! Era por isso que tinha acabado de aceitar vê-lo novamente e a razão de estar tão animada.

Ele foi buscá-la em sua casa e seguiu para o cinema como haviam combinado. Seu celular, que estava fixado no suporte e mostrava o caminho que fariam, começou a tocar e rapidamente o rapaz puxou o aparelho para atender a ligação, não rápido o suficiente para que Valentina não visse o: “Mamãe ligando” piscando em sua tela. Ela achou engraçado o jeito como ele havia cadastrado o número de sua mãe no telefone, raramente ouvia pessoas daquela idade chamando suas matriarcas com aquela palavra, geralmente era usada no diminutivo, mas achou bonitinho, um pouco interiorano.

Não sabia ao certo como aquilo tinha acontecido, mas lá estavam Valentina, o rapaz e a mãe dele no cinema. Eles correram para a casa dele depois do telefonema, pois sua mãe tinha dado a entender que estava passando muito mal e estava precisando de socorro, porém logo que chegaram a mulher, toda produzida, já foi entrando no carro dizendo que estava melhor, mas que seria mais sensato se fosse junto com eles só para garantir que não acontecesse algo de errado novamente. E foi assim que seu encontro acabou contando com uma pessoa não programada. O filme acabou, eles foram comer alguma coisa e depois os dois deixaram Valentina em sua casa. Ela abriu a porta de entrada e suspirou. Admitia que a noite não tinha sido de todo ruim, não fora nada como ela havia imaginado, porém tanto o rapaz quanto sua mãe a trataram com muito respeito à todo o momento, então não era como se tivesse realmente algo do que pudesse reclamar. Era até bonito de ver como ele cuidava bem de sua mãe, mas toda essa demonstração de carinho tinha que acontecer tão cedo? Afinal era somente seu segundo encontro com o sujeito. Bem, não crucificaria o cara ainda só por ter cuidado de sua mãe, não era isso que todo mundo queria no fundo? Alguém que se importasse com os outros? De família? Decidiu ver como as coisas rolariam.

Eles continuaram conversando e se encontrando, o rapaz cada vez mais empolgado com Valentina. Seria perfeito se a mãe não desse um jeito de aparecer em todas as ocasiões. A mulher tinha até mesmo adicionado Valentina ao Facebook e já conversava mais com ela do que o próprio filho. Era parque, cinema, restaurante, teatro. Em todos os lugares o trio sempre estava junto, alguns deles, inclusive, eram escolhidos pela própria mulher. No começo Valentina relevou a situação, tinha ficado com pena da mãe do rapaz, pois ele a contara que não fazia muito tempo tinha perdido o pai e desde então sua mãe nunca mais saíra para lugar algum, completou o discurso dizendo que era muito importante para ele ver que sua mãe tinha visto uma amiga em Valentina, foi por isso que tinha se segurado até então, porém não aguentava mais a presença da mulher em todos os lugares que ia com o rapaz. Queria estar só com ele! Mas não achava certo rejeitar a pobre senhora, afinal ela nunca havia lhe tratado mal, quem tinha que contornar aquela situação era o filho dela, mas o rapaz parecia gostar cada vez mais daquilo tudo. Em uma certa tarde, enquanto o trio passeava em um parque, Valentina decidiu que levaria a situação para o tudo ou nada, afinal ela nem estava namorando com o rapaz e já estava carregando a sogra para baixo e para cima, como ficariam as coisas se acaso a relação deles evoluísse? Aproveitou que a mulher estava mais afastada olhando os patos no lago e fez sua proposta.

– Estava pensando, e se na semana que vem a gente estendesse nosso encontro e sei lá, fossemos a um motel? – Seu rosto enrubesceu por ter feito o convite tão diretamente, mas era a única situação onde se imaginava livre da presença da mãe do rapaz. Ele olhou para ela por um tempo e pareceu se empolgar.

– Que ótima ideia! Mamãe adora uma hidromassagem. – Ele se levantou da grama em que estava sentado, deu um beijo em sua testa e até a mulher que estava perto do lago contar a novidade.

No dia seguinte Valentina mandou uma mensagem à mãe do rapaz. “O problema não é você, sou eu…”. Terminou tudo naquele instante, afinal sua relação era com a mulher e não com o filho. Valentina apagou ambos de suas redes sociais e voltou aos aplicativos de relacionamento.

Visita 127

A tela piscava na minha frente, estava tão cansado que nem sabia ao certo se era ela ou meus olhos que estavam pescando ocasionalmente. Balancei um pouco a cabeça e tomei mais um gole da xícara de café ao meu lado em cima da mesa. Eu tinha que terminar aquele plano, o carnaval já estava logo ai e eu nada tinha feito para me preparar para o que viria. Era verdade que da última vez todo meu planejamento fora em vão, afinal eu tinha conseguido um milagre de Natal, no último minuto do segundo tempo, depois de já ter memorizado todo o plano 126, a velha ligou avisando que não poderia vir porque um tal de tio Manoel resolvera partir desta para melhor. Nunca conhecera esse parente da minha esposa, mas eu tinha certeza que só com aquele último ato de benevolência o cara já tinha o seu lugar garantido no céu. Santo tio Manoel! Que sua alma iluminada descanse em paz. Tomei mais um gole do café e continuei, seria muita sorte para uma pessoa só ter outra morte na família assim tão rapidamente.

Ela entrou no apartamento já reclamando do motorista particular que tinha solicitado para trazê-la da estação até nossa casa, disse que o homem cheirava mal e não sabia se colocar em seu devido lugar, quase sugeri que fossemos correndo a um hospital fazer um teste de DNA porque, devido as semelhanças, as chances daquele sujeito ter algum parentesco com ela eram muito grandes. Tinha algo que não se encaixava naquela visita, apesar de todos os insultos e comentários sarcásticos de costume ela parecia levemente mais dócil. Até mesmo tinha me deixado dormir em minha própria cama! Bati a cabeça para saber o que tinha de errado, eram anos de convivência e o ser nunca tinha mudado uma vírgula de sua personalidade encantadora, o que tinha de diferente agora? No jantar daquela noite ela soltou a bomba que eu estava aguardando. Um namorado? A velha tinha conseguido arranjar um namorado? Eu sempre achei que toda panela tinha sua tampa, até conhecer minha sogra, ao primeiro contato com ela eu percebi que realmente haviam frigideiras espalhadas por esse mundão a fora das quais nem tampas possuíam, ela ter conseguido alguém naquela altura da vida realmente ia contra todas as leis da natureza. Não poderia dizer que era um santo, pois se fosse teria segurado a jararaca em sua terra natal durante o feriado, mas o coitado estava quase lá. É claro que ninguém superaria o Santo tio Manoel, este agora estava recebendo as graças eternas de um trabalho bem feito, mas o tal sujeito estava se esforçando. Ela passou os dias trancada no apartamento como uma adolescente pendurada ao telefone e, até mesmo fazia vídeo chamadas no computador ocasionalmente. Para mim, não ter o seu foco voltado a fazer da minha vida um inferno era uma grande vantagem, mesmo que sua presença constante profanasse meu recinto sagrado, mas eu sabia que seria muita sorte ser agraciado com dois milagres seguidos, então já estava esperando pela pegadinha quando ela fez seu escândalo em uma madrugada. Lúcia e eu acordamos com seus gritos desesperados, a velha desembestou a falar que nunca tinha sido tão humilhada em sua vida e que estava tudo acabado entre eles, que sua vontade era de se jogar daquela sacada, eu teria permanecido na cama se soubesse previamente do seu plano brilhante, apesar de que acabaríamos sendo multados pelo condomínio por jogar lixo em área comum se ela realmente seguisse com isso. Essa tinha sido rápida! Eu já tinha considerado a possibilidade do cara ser um interno do hospício existente em sua cidade, mas ele me parecia ser muito lúcido agora. Lúcia levou sua mãe para o quarto alegando que com uma boa noite de sono tudo se resolveria e eu fiquei olhando as duas partirem incrédulo. Inacreditável! A megera mal tinha terminado e já tinha me expulsado do meu próprio quarto.

No dia seguinte ela acordou com a corda toda, dizendo que iria aproveitar o feriado dos solteiros. Eu achei aquilo um disparate, mas ela conseguiu nos arrastar para todos os blocos de carnaval da cidade, não sabia o que ela queria de fato com isso até eu ver uma cena que me deu vontade de arrancar os olhos fora. Ela realmente estava dando em cima daquele rapaz? O moço tinha idade para ser seu neto! Eu precisava agir. Chamei um menino que carregava consigo um daqueles sprays de espuma e paguei cinco reais para que ele jogasse o jato na direção do casal. Deu certo! Assim que minha sogra foi atingida ela começou a xingar todos a sua volta e o rapaz aproveitou a oportunidade para sair de perto dela. Isso! Corra e salve-se das garras do cruel inimigo meu jovem.

Acordei com o pensamento de que iria surtar se tivesse que escutar mais uma única marchinha naquele dia, mas ao adentrar a sala vi minha sogra na porta com suas malas feitas ao lado.

– O que está acontecendo? – perguntei, acho que ainda estava sonhando.

– Eu estou voltando para casa. – Olhei incrédulo para ela, um leve sorriso querendo se formar em meus lábios.

– Tão cedo? O que aconteceu?

– Eu e meu namorado reatamos, não aguento mais ficar longe dele. – Ela me fitou por um tempo. – Não finja que está triste Leandro, sei muito bem que você não via a hora de se ver livre de mim. Tudo bem! É o fardo que tenho que carregar por sempre dizer a verdade aos outros, já estou acostumada. – Eu não tinha forças nem para responder a sua provocação, tamanha era minha felicidade. Seu celular bipou. – É o meu táxi. Dá para deixar de ser imprestável e me ajudar com as malas? Se já não bastasse não poder me dar uma carona para a rodoviária de tão tarde que acorda todo dia, ainda vai ficar parado ai que nem uma porta?

Ajudei a descer suas coisas e no caminho fiquei pensando que o danado do namorado realmente tinha conseguido reservar seu lugar no céu junto ao Santo tio Manoel.

Ela e Ele – O encontro

Ela estava na frente do espelho escolhendo que roupa iria colocar. Nunca tinha tido um encontro como aquele, em duas etapas, mas estava animada com as expectativas. Para essa primeira fase tinha sido alertada a usar algo confortável, então seguiu as recomendações à risca. Colocou um shorts boyfriend jeans com uma blusinha clara e uma sandália rasteira. Fez uma maquiagem básica e separou algumas coisas para levar na bolsa à tira colo. Não sabia para onde ia, era uma surpresa, mas sabia que fariam um tour pela cidade de São Paulo.

Ele resolveu deixar o carro na garagem, seria um encontro à moda antiga. Estava ansioso, nunca tinha feito aquilo antes, mas já tinha revisado todo o roteiro diversas vezes e a cada vez que relia se sentia mais seguro com aquilo. Chegou à estação de metrô combinada às nove horas da manhã. Ela estava parada perto da escada rolante batendo um dos pés no chão, um pouco insegura, e tão linda! Ele a cumprimentou e os dois subiram para a Avenida Paulista, caminharam um pouco até uma padaria tradicional da região, lá iriam fazer os seus desjejuns. Após a primeira refeição do dia ele guiou ela à pé até o parque Ibirapuera, enquanto lhe contava coisas sobre a vida e algumas curiosidades que sabia a respeito do local.

Ela estava encantada que ele tinha planejado até o café da manhã dos dois e ficou ainda mais contente quando viu que estavam indo ao parque, com certeza tinham começado aquele encontro com o pé direito. Caminharam, andaram de bicicleta, sentaram na grama comendo a pipoca doce que ele havia comprado. Quando o sol já alcançava o seu pico ele levantou-se anunciando que precisavam continuar seguindo o roteiro, pois ainda havia muito mais programado. Foram para o metrô mais próximo e seguiram para o centro antigo da cidade.

Ele estava animado para chegar ao próximo ponto do seu itinerário. Havia explicado a ela que fariam um tour pela cidade como se fossem turistas que a viam pela primeira vez, então que lugar melhor para se almoçar do que o famoso cruzamento eternizado na voz de Caetano da Av. Ipiranga com a Av. São João? Com certeza alguma coisa já acontecia no seu coração! Tiveram um almoço bem brasileiro em um bar muito conhecido da região, aproveitaram para tomar alguns chopps enquanto conversavam um pouco mais para se conhecerem.

Ela não conseguia acreditar que dava para conhecer tanto da cidade em um único dia, assim que saíram do bar, passaram pelo Viaduto do Chá para pegar o próximo metrô com destino a parada seguinte. Já era fim de tarde, mas ainda estava claro, quando ele a surpreendeu descendo na Vila Madalena, o que ele queria? Deixá-la bêbada? Mas é claro que suas intenções estavam longe disso. Percebeu assim que chegaram ao Beco do Batman e ele sacou o celular do bolso para que começassem a tirar fotos e mais fotos naquelas paredes todas grafitadas. Tão urbanas e tão lindas! Aquilo só ficava cada vez melhor.

Ele achava que seus planos tinham saído como esperado, pelo menos ele se sentia muito feliz e mal via a hora de encontrá-la novamente para a segunda parte do seu tour. Combinaram de ir para casa, tomar um banho e se arrumar para a próxima etapa. Desta vez tinha que ir mais arrumado, então colocou uma calça de sarja com um sapatênis e uma camisa. O carro sairia da garagem, buscaria a dama em sua casa como um perfeito cavalheiro. Já tinha confirmado as reservas e estava pronto, só contando os minutos para encontrá-la novamente.

Ela não tinha palavras para explicar o que sentia, o dia já tinha sido maravilhoso e agora ele havia programado o jantar em um restaurante tradicional que tinha uma vista panorâmica para a cidade toda. Enquanto esperava a comida ser servida ficou admirando as luzes da cidade e imaginando que não poderia ter mudado nada naquele dia, simplesmente estava perfeito. Em um clima mais romântico, conversaram mais durante todo o jantar.

Eles se beijaram ao final do encontro como era de se esperar, seus corações palpitando no mesmo compasso com o toque um do outro. Não sabemos onde isso irá parar, na verdade nem eles sabem! Mas a cidade abriu uma porta para eles que dificilmente será fechada novamente. E o resto? A gente descobre depois.

A terra de Babel

Alguns dizem que é só seguir por um caminho tortuoso que começa ali e vai para lugar algum, já outros, que precisamos seguir o curso do rio até as entranhas da floresta longínqua, mas a verdade é que não importa qual seja o caminho que se tome, a única coisa em comum é o fato de ser quase impossível de se chegar. Entre montanhas quase tão altas que tocam o céu e florestas inexploradas dos confins do mundo se encontra uma pequena cidade onde a tecnologia ainda não chegou e a paisagem o homem quase não mudou. Tal isolamento já a torna uma joia rara nos dias de hoje, porém, se não bastasse, ela ainda conta com outro fato quase tão peculiar quanto seu surgimento: cada um de seus habitantes fala uma língua diferente. Como isso é possível? Ninguém sabe. Mas é certo que, mesmo sendo no máximo algumas pessoas de uma mesma família que conseguem se comunicar em um mesmo dialeto, o comércio, as transações e o convívio fluem como se todas se entendessem muito bem e de fato, de algum jeito, se entendem.

Certo dia um forasteiro apareceu. Ele ficou maravilhado com aquele pequeno vilarejo e com as pessoas que o habitavam e logo percebeu que não havia uma língua em comum, que cada um tinha seu jeito próprio de se comunicar. Achou tudo aquilo muito estranho, mas viu uma oportunidade no ar, de onde ele vinha não era ninguém, mas ali, naquele lugar, poderia ser rei se fizesse com que aquelas pessoas perceberem que havia um jeito de todas falarem a mesma língua. Então colocou seu plano em ação: elegeu o idioma que mais lhe agradava, montou uma escola e espalhou a novidade. Em pouco tempo cada vez mais curiosos e inocentes atendiam as suas aulas, querendo conferir o mais novo empreendimento do vilarejo e se encantando com a nova forma de se pronunciar.

Meses se passaram e o forasteiro não poderia estar mais contente, seu plano ia de vento em polpa, quase todos da cidade já falavam a língua que ele havia escolhido e ele era tratado como uma celebridade entre as pessoas. O lugar já mostrava alguns sinais de mudança: novos comércios e oportunidades. Era certo que o vilarejo se expandiria e se continuasse assim, seria reconhecido no mundo moderno e o forasteiro seria o bem feitor que fez com que tudo aquilo acontecesse. Porém coisas estranhas começaram a acontecer junto com a expansão da cidade. Brigas nas ruas, discussões entre vizinhos, pequenos furtos e roubos, que nunca antes foram vistos começaram a aparecer. As pessoas já não eram mais tão felizes, viviam com as caras emburradas e por muito pouco perdiam a paciência uns com os outros. O ódio e o preconceito, nunca antes pronunciados, agora haviam se instalado ali. Já não mais era a mesma cidade que o forasteiro tanto admirara assim que havia chegado a ela. Talvez fosse somente questão de adaptação, logo tudo se ajeitaria novamente, pelo menos assim ele esperava. Contudo, em uma noite de verão, o pior aconteceu. Não soube como começou e nem como proceder, só se lembra de ter acordado em sua casa com os gritos histéricos das pessoas nas ruas e logo correu para ver do que se tratava. Uma das casas havia pegado fogo. Alguns tentavam apagá-lo enquanto outros queriam entender o que tinha acontecido. Não demoraram a descobrir que o fogo havia sido proposital, o primeiro crime com vítimas fatais da história do vilarejo havia acontecido, duas pessoas haviam morrido por culpa da intolerância que agora existia. Desgostoso, o forasteiro decidiu ir embora da cidade na manhã seguinte e arrumou suas coisas. Não entendia o porquê daquilo estar acontecendo, pensou que o vilarejo era uma causa perdida no final das contas, por isso a tanto fora esquecido. A melhora na comunicação deveria ter trazido progresso e não desordem. Pegou sua mala e partiu, sem nunca mais olhar para trás.

A cidade nunca mais fora a mesma. Com o tempo, assim como o forasteiro havia previsto, ele ficou conhecida no mundo moderno, mas nunca teria nada de especial se comparada a qualquer outro lugar. Os habitantes nem se lembravam mais do porquê de terem vivido tão isolados por tanto tempo e o que os tornavam tão diferentes. O forasteiro acertou em todas suas previsões, porém não percebeu que o que a fazia o vilarejo tão especial e o que realmente havia lhe encantado era justamente a forma de comunicação única que ela possuía. Com certeza tinha suas limitações, mas foi assim que os habitantes do lugar aprenderam a respeitar as diferenças uns dos outros e a, principalmente, pensar antes de falar. Viviam uma vida simples e não tinham espaço para dizer mais do que deveriam. Agora que podiam se expressar da maneira que quisessem, não pensavam duas vezes antes de falar e foi exatamente neste ponto que acabaram esquecendo o valor das palavras. O forasteiro fez com que ganhassem o mundo, mas perdessem o que era essencial.

O prêmio

Esta é a história de Jorge, um escritor. Sim, um escritor. Não um qualquer, mas sim o autor de inúmeros best-sellers de autoajuda sobre relacionamentos. Podemos dizer que isso o torna uma pessoa bem sucedida, não é mesmo? Tem fama, tem dinheiro, reconhecimento, o que mais poderia querer? De fato nunca pedira por mais nada, seria completo se não fosse um pequeníssimo detalhe: sua paixão sempre fora as fantasias. Não vamos entendê-lo mal, sempre fora grato por tudo o que tem, gosta do que faz e dos fãs que o seguem, nunca negou que tem uma boa vida, mas seu coração pulsava mesmo sempre que se sentava para inventar uma história fantástica. Sabe aquelas que fazem sua imaginação viajar entre mundos, reinos distantes e lugares inalcançados? Eram nessas dimensões que Jorge adorava se encontrar. Naquelas ficções que somente poderiam existir nas páginas de um livro ou nas películas de um filme. Ele tentava fazer com que seu sonho se tornasse realidade, sempre postava seus contos em sua página junto com os outros textos que já faziam sucesso, mas eram poucos os fãs que realmente liam ou se interessavam por eles, enquanto todos os outros eram procurados e elogiados, suas fantasias sempre ficavam de lado. Não era sucesso o que queria, isso ele já tinha, Jorge queria partilhar seu sonho, saber que alguém estava naquelas terras distantes junto com ele, que não estava sozinho nesta jornada.

Chegou a comentar sobre suas frustrações com amigos e conhecidos, porém todos lhe diziam sempre a mesma coisa: “Você está sendo dramático! Lógico que as pessoas leem suas obras, sejam elas quais forem, afinal você não é o grande Jorge?”, mas ele não estava convencido e arquitetou um plano para finalmente provar quem carregava a razão. Na manhã seguinte publicou em seu site o seguinte texto:

Não direi qual, mas para aqueles que lerem meus textos até o final, em um deles encontrará um prêmio excepcional. Se te tocar, provavelmente será nele que irá encontrar. A última dica que lhes ofereço é que será algum de meu total apreço.

E assim Jorge fez. Alguns dias depois de seu anúncio continuou a postar seus textos sobre relacionamentos e seus contos fantásticos, mas nenhum deles continha o tal tesouro, por hora, queria somente saber qual seria a reação provocada e o resultado não poderia ter sido outro, seus acessos haviam triplicado e as pessoas não paravam de comentar ou tentar adivinhar qual seria o prêmio e em qual dos textos estava contido. Até mesmo seus contos, agora, estavam sendo mais requisitados, mesmo que a maioria ainda só os estivesse lendo por curiosidade, pois eram aqueles já haviam desistido de procurar nos textos mais famosos e agora estavam dando uma chance às fantasias, com a esperança de ali encontrar o grande tesouro a tanto mencionado. Jorge decidiu que já era hora de dar aquelas pessoas o que elas procuravam, então escreveu como nunca antes na vida. Dia e noite dedicou-se aquela que seria sua maior obra prima, reuniu em uma única história todos os elementos que mais apreciava: a ficção, a fantasia, terras distantes, povos desconhecidos, amores proibidos, guerreiros que viraram mitos e corações partidos. Era essa! Esse seria o texto que esperava que mudasse a vida de pelo menos um de seus fãs. A história tinha ficado enorme, muito maior do que o número máximo de caracteres que seria aceitável para um post em uma rede social, mas nem isso o intimidou, de fato até nisso ela estava perfeita, afinal serviria muito bem para aquilo que queria tanto provar: encontrar pelo menos uma pessoa que realmente se aprofundasse em um texto complexo nos tempos modernos. Passaram-se meses e sua página continuava a ter milhares de acessos, as pessoas não haviam desistido do tal prêmio e ainda questionavam como este seria apresentado. Talvez um trocadilho que indicasse a quantia em dinheiro que receberiam ou o lugar para onde viajariam? Mas apesar do sucesso, Jorge se via cada vez mais frustrado. Enquanto todos os outros assuntos triviais “bombavam” na internet, seu pedaço de arte permanecia intacto em meio a tantas outras histórias. Recebia algumas curtidas aqui e outras ali, até alguns comentários, porém, infelizmente, nenhum deles lhe indicava nada a não ser que as pessoas estavam desesperadas e atirando para todos os lados, sem realmente saberem o que procuravam. Ele estava perdendo as esperanças, apesar de sempre ter dito o contrário, no fundo queria acreditar que teria, pelo menos, uma única pessoa que realmente leria sua tão amada obra e por consequência entenderia o fundo de sua alma. Até que em um certo dia, o milagre aconteceu. Já tinha se conformado que seria o único a viver naquele mundo, quando naquela manhã viu uma coisa que encheu novamente seu coração de esperanças: um simples comentário bastou para que toda sua visão de mundo mudasse.

Não sei qual seria esse prêmio de que tanto os outros falam, somente buscava alento para o meu coração quando comecei a ler o seu texto, mas acho que, sem querer, o acabei encontrando. O guerreiro indomado e suas terras míticas acabaram me salvando sem nem mesmo eu ter esperado. Então, talvez o prêmio até seja o dinheiro ou a viagem que todos estão buscando, mas poder me aventurar novamente nessa fantasia para mim já bastaria.”

Ele tentou saber um pouco mais sobre o usuário que havia feito o comentário e ficou impressionado ao descobrir que em tantos detalhes da vida do cidadão eram comuns ao seu próprio conto. Percebeu que por mais que seu texto fosse fantástico, sua história era mais real para aquela pessoa do que qualquer uma outra de autoajuda que já havia escrito. Quando começou tudo aquilo, Jorge só queria provar que as pessoas não liam seus textos realmente e se achasse alguém que o fizesse, com certeza, deveria ser recompensado. Mas ele não esperava que o prêmio verdadeiro seria dele afinal, pois aquela única pessoa lhe fez ver que o bom leitor não era aquele que tinha os mesmos gostos que ele e sim, aquele que tirava o melhor de tudo que lhe era apresentado. Daquele dia em diante não se preocupou mais em saber se os outros estavam tirando a lição correta de seus textos, nem mesmo buscou mais um parceiro para as suas aventuras, sabia agora que bastava ser de coração para que todos os outros o seguissem aonde quer que fosse.